
150 Anos: S. Daniel Comboni e os Combonianos no Brasil hoje
“Vi a miséria do meu povo e escutei o seu grito. Desci para libertá-lo.”
Escutamos aquele grito. A missão não nos pertence, o Espírito do Ressuscitado nos precede e a paixão inquieta de Daniel Comboni nos empurra para ousar novas fronteiras.
“Vi a miséria do meu povo e escutei o seu grito. Desci para libertá-lo.”
Assim começa a história do Deus libertador e também a nossa missão de aliança com os mais pequenos. É um grito de festa que nos surpreende cada dia pela sua força renovadora: o povo brasileiro libera vida das raízes das suas culturas, na vitalidade da sua dança, na mística ancestral das comunidades indígenas.
É um grito de orgulho e dignidade que ressoa na organização popular, na resistência criativa aos diversos ciclos de opressão, réplica incessante de uma história colonial. Mas é também o clamor muito atual da violência nas periferias urbanas: o Brasil em números absolutos é o país com mais homicídios no mundo e o terceiro pela sua população carcerária que está em crescimento.
É o grito violento do homicídio dos Defensores dos direitos humanos: a cada 5 dias um deles é morto enquanto promove o direito à terra, à casa e ao trabalho da sua gente.
É o grito sufocado da Mãe Terra, “entre os pobres mais abandonados e maltratados” (Laudato si’, 2): no ano passado na Amazônia brasileira o desflorestamento voltou a crescer com um aumento preocupante de 29% com respeito ao ano anterior. Corresponde a um aumento de produção de dióxido de carbono igual a 8 anos das emissões de todo o parque automóvel do país! É o nosso jeito silencioso e covarde de desmontar de forma escondida o acordo de Paris.
Escutar este grito e caminhar, fortalecidos pela promessa de vida do Pai e pela sua presença constante a nosso lado: a espiritualidade do Êxodo alimenta de modo muito atual a nossa identidade missionária. Deus se revela às pessoas que aceitam a aventura social e política de abandonar a escravidão.
Fiéis à nossa história
A história comboniana no Brasil começou em 1952: nesse mesmo ano, os primeiros missionários chegaram contemporaneamente ao sudeste e ao nordeste. Ao início não houve grande esforço de inculturação, a prática missionária tinha tendência para reproduzir o modelo de igreja e de pastoral da Europa. Na verdade, esta tentação ainda hoje está viva e talvez seja o desafio maior para a igreja universal.
Mas, sem dúvida, a convivência com a igreja latino-americana pouco a pouco nos modelou: as conferências do episcopado latino-americano em Medellin e Puebla foram provocações fortes ao nosso modo de pensar e de viver a missão: acenderam também em nós a luz da opção pelos pobres e da promoção da justiça e da paz.
Colaborando com a comissão Pastoral da terra e com o conselho indigenista Missionário chegámos a compreender, dia após dia, que ser igreja significava também tomar posição, em tempos de conflito sério, sobre temas da concentração da terra, da reforma agrária e do respeito das diversidades étnicas.
Participavamos na formação sindical, social e política a partir da palavra de Deus. Antecipava-se naquele contexto e com vários limites, o que o Papa Francisco solicita hoje vivamente: “A solidariedade exige a criação de uma nova mentalidade que pensa em termos de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (EG 188).
Nas periferias das grandes cidades em crescimento, sem ter competência nem força para fazer frente a tanta exclusão estrutural, fundamos centros de defesa da vida e dos direitos humanos em colaboração com voluntários e profissionais competentes no campo dos direitos humanos e da educação popular. A nós missionários esperava-nos o papel de alimentar a espiritualidade e a esperança destas pessoas, acreditando tenazmente na ressurreição do coração da morte violenta das periferias.
A nossa animação missionária consistia em contar a vida dos pequenos e a aliança dos missionários com eles. A revista comboniana Sem Fronteiras, ainda que criticada especialmente nos anos em que igreja brasileira se aproximava da “grande disciplina” (do título do livro de J. B. Libânio. crítico em relação às intervenções do Papa João Paulo II na América Latina, que restaurava uma lógica distante do espírito do Concílio Vaticano segundo e das sucessivas conferências episcopais do continente), abria caminho nas paróquias, nos grupos pastorais e nos círculos universitários.
Experimentávamos diariamente práticas de formação dos coordenadores das comunidades, dos ministros dos sacramentos e da pastoral social. Ss comunidades eclesiais de base (Ceb) eram um contexto vivo para estimular a ministerialidade e o protagonismo dos leigos, mulheres e homens.
Três Rostos
A história comboniana no Brasil está marcada por figuras muito significativas. Mencionamos apenas três, cada uma com o seu apelo específico.
Heitor Frizotti (1953-1995) Reconheceu e testemunhou a presença de Deus na cultura e religiões dos afrodescendentes em Salvador da Bahia. Sofreu na pele a exclusão e os preconceitos ainda hoje presentes, em relação à fé e ` vida das pessoas negras no Brasil. Mas repetia com paixão que com e entre os africanos sentia o “perfume do Evangelho”.
Ezequiel Ramin (1953-1985). Deixou-se envolver pelo cheiro das ovelhas na região amazônica. Caminhou ao lado das comunidades indígenas e das famílias sem-terra, sem recuar, quando era necessário tomar uma posição: “se a minha vida nos pertence, vos pertencerá também a minha morte”. Foi morto enquanto procurava mediar mais um conflito de terras. “Terra, teto e trabalho”, os três T, são um “direito elementar inegavelmente necessário” comentaria o Papa Francisco.
Franco Masserdotti (1941-2006). Viveu a sua vocação missionária a nível institucional: primeiro membro do Conselho geral dos combonianos, foi depois bispo no Brasil e Presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Podemos considerá-lo o rosto comboniano no Brasil de uma “igreja em saída, com as portas abertas para chegar às periferias humanas” (EG 46).
Partindo da nossa história e das pessoas que a construíram, muitas vezes no anonimato de um serviço escondido, aprendemos que evangelizamos e somos evangelizados na partilha pessoal e comunitária da alegria e da misericórdia, procurando promover uma humanidade reconciliada com Deus, com a criação e com os outros.
No trabalho missionário privilegiamos o anúncio e o testemunho da justiça e da paz com toda a criação, animando a nossa igreja para que se abra ao mundo e viva sempre mais próxima dos mais pobres e abandonados.
Para evitar a dispersão ou a superficialidade, nos dedicarmos a quatro campos específicos de missão, muitas vezes interligados com o empenho local em paróquias e comunidades cristãs. Deste modo a nossa paixão missionária se enriquece com o contributo dos leigos, e a igreja local é estimulada pelo Carisma comboniano.
O primeiro campo é a evangelização na Amazônia: esta fronteira desafia a igreja latino-americana que está tentando responder de modo articulado, organizando a rede eclesial pan-amazônica (Repam). A prioridade é a defesa dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Os combonianos destacam-se pelo trabalho incessante na rede Justiça nos Trilhos, que há 10 anos protege e apoia as vítimas da extração mineira na Amazônia Oriental.
Outro campo missionário é viver e descobrir o evangelho entre os afrodescendentes: no diálogo inter-religioso, na promoção intercultural e dos direitos afro contra todas as formas de racismo nas escolas, na educação para a mundialidade.
A evangelização nas periferias urbanas é ‘pão para os nossos dentes’, uma vez que a maior parte das nossas comunidades fizeram esta escolha evangélica: a serviço dos mais pobres, das pessoas consideradas “descarte” porque desocupadas, escravas da droga ou do alcoolismo, ou esmagadas em condições desumanas atrás das grades. Oferecemos comunidade e inclusão, percursos de reconciliação e perdão, defesa dos direitos, alternativas de vida e propostas formativas especialmente para o grupo mais frágil, as crianças e os adolescentes: pessoas em construção numa sociedade que se desagrega.
Por fim a nossa proposta missionária e vocacional à igreja do Brasil, porque é urgente que este país-continente se abra ao mundo e os jovens se apaixonem por um sonho que vale a pena. Estamos explorando o complexo mundo da comunicação juvenil e percorrendo as redes sociais com provocações que tragam as pessoas do virtual para uma escolha de vida plena e feliz.
O sentido e a Eficácia
Hoje o sentido e a eficácia da missão necessitam de constante avaliação. O maior desafio é o reaparecimento do fundamentalismo religioso, tanto católico como neopentecostal. O apelo sentimental à consolação do espírito pode satisfazer emotivamente mas não resiste ao tempo. O rigorismo moral cria temor e aprisiona mas não nos faz crescer como pessoas.
O que nos espera a nós missionários é superar a promoção normativa da instituição religiosa e encontrar o espírito de Jesus em cada gesto ao serviço da vida e dos valores do Reino. Colocar-nos a caminho juntamente com os pequenos e os pobres. Anunciar o evangelho a quem não acredita, mas fazê-lo passo a passo, encontrando e testemunhando a presença de Deus nos encontros cotidianos, manifestando a alegria de ser parte de uma comunidade cristã, contagiando com a nossa esperança os cenários mais desoladores.
Um outro desafio são os novos modelos de igreja e os ministérios. Informalmente protagonista nas nossas comunidades, a mulher continua desprovida de autoridade institucional. Em vários contextos o sacerdócio celibatário é incompreensível e insuficiente para o acompanhamento pastoral de todas as comunidades. A nós combonianos, no contexto da diminuição de vocações para a vida consagrada, toca saber valorizar melhor todas as formas de vida laical que se reconhecem no nosso carisma. Propor percursos de identificação formação e missão aos leigos e leigas que se empenham conosco.