35 Anos-Martírio do P Ezequiel, com D Erwin Krautler
Padre Ezequiel Ramin, de 30 anos, desde o começo de sua missão pastoral, colocou-se decididamente ao lado dos índios e posseiros, já há tempo apavorados pelos frequentes conflitos de terra. Fazendeiros inescrupulosos querem expulsá-los, querem “limpar” a área. Dom Erwin logo logo passa para a atualidade, não menos macabra: “Não é o primeiro e certamente não será o último”… mártir!
Dom Erwin, bispo do Xingu-MT
“FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM!”
A última missa de Padre Ezequiel Ramin…
1. Jovem, apenas 30 anos de idade, cheio de vida e entusiasmo, Ezequiel Ramin veio no ano passado da Itália para servir ao Povo de Deus da Diocese de Ji-Paraná, nos confins do Estado de Rondônia, divisa com Mato Grosso. Desde o começo de sua missão pastoral colocou-se decididamente ao lado dos índios e posseiros, já há tempo apavorados pelos frequentes conflitos de terra. Fazendeiros inescrupulosos querem expulsá-los, querem “limpar” a área e não têm receio de lançar mão de todos os meios para conseguir o intento, nem que seja à força e a preço de sangue derramado. Criam milícias privadas, integradas por pistoleiros armados até os dentes, que por um preço previamente ajustado, matam quem os mandantes latifundiários consideram “incômodo”.
2. Dia 24 de julho, por volta de meio dia, Padre Ezequiel Ramin tornou-se mais um mártir do Brasil e da América Latina. Derramou seu próprio sangue como testemunho supremo de amor e doação à causa dos pobres. Ao voltar de uma visita às famílias dos posseiros que ocupam uma parte dos 30.000 hectares da Fazenda Catuva em Cacoal (RO) foi surpreendido por uma emboscada armada de quase trinta jagunços. O Jipe que dirigia foi alvejado pelas balas. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais que acompanhava o Padre conseguiu fugir e escondeu-se na mata para salvar a vida. O padre Ezequiel, já ferido, ainda caminhou uns trinta metros, caiu no chão e aí, indefeso e desprotegido, foi alcançado pelos pistoleiros que completaram o macabro e perverso serviço. Fulminaram o Padre crivando-o com dezenas de tiros.
3. Não é o primeiro e certamente não será o último na atual conjuntura a sucumbir às balas ou facadas de jagunços a mando dos senhores deste mundo. Emerge apenas um nome em meio a uma legião incontável de mártires anônimos, pobres colonos, índios, humildes pais de família, homens e mulheres, que nos últimos anos e meses sofreram a mesma sorte. Quantos estão sepultados nas matas do sul do Pará! Ninguém os sabe contar. Sabemos apenas que são muitos. Do Padre conhecemos o nome, sua origem e os detalhes do bárbaro assassinato. Mas sua morte tem que ser situada no contexto de sua missão. O assunto “Padre” hoje não se restringe mais ao âmbito da Igreja. Há cientistas sociais, historiadores, psicólogos, jornalistas e políticos que argumentam a respeito e as opiniões são às vezes tão diversificadas que se tem a impressão de que estão falando de diferentes temas.
4. No entanto, o Ser do Padre, sua identidade e missão jamais serão compreensíveis numa dimensão meramente humana. Categorias e critérios humanos não são capazes de alcançar o cerne, o âmago da questão, porque a razão mais profunda do Ser Padre sempre está ligada à Pessoa de Cristo Jesus. Sua identidade e missão só podem ser entendidas a partir do Evangelho do Senhor.
Quando Jesus, na véspera de sua morte, tomou o pão e disse “Isto é meu corpo, entregue por vós” e quando ergueu o cálice e falou “Este cálice é a Nova Aliança em meu Sangue” acrescentou cada vez as palavras “Fazei isto em memória de mim!“ Vivei a Eucaristia, segui o meu exemplo! Colocar toda a vida a serviço do povo de Deus não é uma escolha piedosa a critério pessoal, é mandato do Senhor. Quem celebra a Eucaristia deve estar pronto a doar sua vida a serviço dos irmãos. “Dei-vos um exemplo para que como eu vos fiz, também vos façais” (Jo13,15). É no exemplo do Senhor que o Padre encontra a motivação de toda a sua missão. A partir de sua ordenação ele se compromete ao serviço, até as últimas consequências. Mesmo ameaçado de morte, perseguido, caluniado, incompreendido, preso, mesmo atingido por balas, ferido ou assassinado, ele vive e morre realizando a memória do Senhor que tantas vezes celebrou no rito sagrado.
5. O Padre Ezequiel Ramin, como tantos outros ao longo dos séculos e na história recente da América Latina, chegou ao ponto culminante da Eucaristia. Concretizou-a, não mais através de palavras proferidas diante do altar, mas através do gesto supremo de entregar seu corpo e derramar seu sangue. Reviveu a Eucaristia do Senhor, não mais nas espécies consagradas de pão e vinho, fruto da terra e do trabalho humano, mas em seu próprio corpo, carne e osso, nascido de uma heroica mulher na longínqua Itália, entregue por amor, e no sangue que jorrou de dezenas de chagas abertas e tingiu a terra cobiçada pela ganância e ambição das riquezas, clamando aos céus por vida plena na justiça e na paz para as famílias dos pobres.
Altamira, 31 de julho de 1985
Erwin Kräutler C.PP.S.
Bispo do Xingu
NOTA: Dom Erwin é também coordenador da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)
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