A beleza da descoberta da Paternidade/Maternidade de Deus
Comecei a minha trajetória com a Pastoral do Menor pelas ruas de São Paulo. Naquela época não havia muitos recursos. Fazíamos atividades nas calçadas e nos bancos das praças com o pouco material que conseguíamos de doação. Confesso que éramos felizes e não sabíamos. Não perdíamos tempo precioso com documentação, burocracia, prestação de contas e redação de relatórios como acontece hoje. Tudo era partilhado. A única cobrança vinha da meninada. Dava bronca em nós quando faltávamos. Ao término de nossas atividades havia sempre um momento de reflexão. Fazíamos uma roda, cantávamos, depois cada um/a avaliava o dia com uma palavra. Enfim, rezávamos juntos/as a oração que todo mundo sabia: Pai nosso… Um dia, enquanto fazia uma breve introdução explicando que Deus é Pai, um adolescente me interrompeu dizendo: “Se Deus é como meu pai, pode ficar com ele à vontade. Eu prefiro ficar sem!”. Houve uma gargalhada geral não só pelas suas palavras, mas sobretudo pelo seu jeito de falar. Parecia uma piada, mas era o retrato da dura realidade que vivia. Muitos se reconheceram em sua fala. É evidente que, quando se aborda o tema de paternidade, a primeira figura que aflora à nossa mente é aquela do nosso pai. Uns guardam boas memórias. O coração esquenta, pois lembram de momentos carregados de afeto e carinho. Mas para outros a situação é diferente, sobretudo quando o pai é ausente, negligente ou, até, violento. Estas tristes memórias ofuscam a maior e melhor definição de Deus que Jesus nos trouxe: Abba. Deus é papai. É interessante que o contexto de tamanha revelação não é catedrático. Jesus não revela a paternidade de Deus através de um dogma, mas por meio da oração. Não basta um exame de DNA, um registro em cartório ou uma decisão judicial para determinar a paternidade. O que faz com que alguém seja reconhecido como PAI é, antes de tudo, a ternura, o afeto e o cuidado. Pai ou mãe não é quem bota no mundo, costuma dizer o povo, mas quem cuida. A oração, portanto, é o contexto melhor para o reconhecimento da paternidade da Deus e da nossa condição filial. Ela, de fato, não é um balcão de negócios. Não é um concurso para ver quem fala mais, mais alto e mais bonito. Que chato aguentar os ataques de logorreia de alguns (des)animadores de encontros de oração. Não serve para pedir coisas, mas para ser transformados. É a oportunidade que damos a Deus de se apresentar assim como Ele é, de mostrar sua vontade, de fazer conhecer sua maneira de pensar e agir para que nos conformemos a Ele. Pois, se é verdade que Ele sabe tudo de nós e do que precisamos, nós, ao contrário, sabemos pouco ou nada a respeito dele ou o conhecemos de maneira distorcida. O jeito que Deus tem para se revelar a nós é a amando-nos com Pai para com seus filhos. Portanto, a oração é deixar-se amar por Deus reconhecido como Abba, papai. É o momento do colo. É, antes de qualquer conversa, sentir o prazer de estarmos juntos com Ele, estritamente abraçados, abandonados com absoluta confiança sabendo que estamos protegidos, mesmo se os acontecimentos da vida, sobretudo aqueles adversos, nos levam a pensar o contrário. É evidente, como diz a nota da Edição Ave Maria da Bíblia, que “embora, em razão de sua cultura patriarcal, os evangelistas não se atrevem a chamar Deus de ‘mãe’, na atualidade nós, já livres desses condicionamentos culturais, não expressaríamos toda a dimensão e nossa relação filial com Deus se não nos dirigíssemos a Ele como Pai/Mãe nosso que estais no Céu, ou simplesmente ‘Pai-Mãe Deus’”. Quando essa experiência acontece, a primeira coisa que dá vontade de pedir é que a sua paternidade-maternidade se faça presente eficazmente no mundo todo. A santificação de Seu nome, a vinda definitiva de Seu Reino e o cumprimento de Sua vontade são pedidos que expressam o desejo de que este amor tão bom seja proporcionado a toda a humanidade, sobretudo a quem não o experimenta nas relações humanas, inclusive dentro da própria casa.
Ao descobrirmos e reconhecermos nossa condição filial fica natural o reconhecimento da dimensão fraterna. A relação com os/as outros/as muda radicalmente. Até a linguagem adquire as dimensões da pluralidade, da comunhão e da partilha. O “eu” se abre ao “nós”. E o “meu” cede espaço ao “nosso”. A oração deixa de ser a busca obsessiva de seus interesses em nome do bem comum, a começar pelo essencial para a vida: pão em todas as mesas. A oração do Pai Nosso nos proíbe de pedir apenas por nós mesmos: “o pão para mim é um fato material, o pão para o meu irmão é um empenho espiritual” (N. Berdiaev). É a pior negação da paternidade/maternidade de Deus permitir por egoísmo ou omissão que os nossos irmãos e irmãs não tenham o necessário para viver com dignidade.
Não dá, também, para ficarmos de cara fechada, remoendo o tempo todo os erros do passado ou o mal que os outros nos fazem. O rancor mina as relações fraternas. É a antecâmara do ódio e da violência. A consciência de pertencimento à mesma família exige que peçamos o dom do perdão para nós mesmos e que o doemos também aos outros. Sem perdão deixamos de ser família de Deus e nos tornamos cria do “diabo” que gosta de semear encrencas e divisões. Trata-se de arrancar a bola de pedra que prende o pé no passado e soltar as velas da vida rumo ao novo futuro.
Enfim, ao Pai/Mãe pedimos algo que é parte inerente da missão da paternidade e da maternidade: a proteção do mal e o apoio necessário para conseguir sair das ciladas das tentações que nos arrastam para a perdição. É bom saber que podemos contar com um Deus que não nos abandona, mesmo quando enveredamos por caminhos errados.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)