
A Eucaristia traída (Jo 13,16-20)
“Aquele que come o meu pão levantou contra mim o calcanhar”. A frase, pronunciada por Jesus durante a última Ceia, depois de ter lavado os pés aos discípulos, é curta e grossa. Resume em poucas palavras uma longa história de traição que não termina com Judas que o vende em troca de um punhado de moedas ou com Pedro que o renega três vezes, mas que continua ainda hoje e envolve inexoravelmente todos/as nós. Quem se alimenta do corpo e sangue de Jesus é também quem o trai. Eis aqui a prova contundente da fragilidade humana. A Eucaristia consumida e adorada não nos exime da traição e não nos imuniza contra a infidelidade.
O Amor em pessoa que nos é doado através da Eucaristia deve fazer as contas com o uso equivocado da liberdade. É desafiado por nossas feridas, contradições e limitações. Confronta-se com o endurecimento do nosso coração. Mesmo diante de uma prova tão grande de Amor, “dizer não” é mais de que uma possibilidade em virtude da nossa dificuldade de amar desinteressadamente.
Mas Jesus não desiste. Faz parte do seu jeito de amar socorrer a fragilidade humana. Logo aponta para o Paráclito. Promete o envio do Espírito para que fique ao nosso lado e nos sustente com toda sua potência. Sua presença é indispensável para receber Jesus, acolher e viver o seu Amor: “Quem recebe aquele que eu enviar me recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele eu me enviou”.
O Espírito transforma o coração e o plasma à luz da Eucaristia. O coração não é simplesmente o órgão vital que bate em nosso peito e que é responsável por distribuir sangue para todo o nosso corpo nem tampouco apenas o lugar onde moram a vida afetiva, as emoções e os sentimentos. “O coração é a morada onde estou, onde habito (e segundo a expressão semítica ou bíblica, aonde eu «desço»). É o nosso centro oculto, inapreensível, quer para a nossa razão quer para a dos outros: só o Espírito de Deus é que o pode sondar e conhecer. E o lugar da decisão, no mais profundo das nossas tendências psíquicas. É a sede da verdade, onde escolhemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, já que, à imagem de Deus, vivemos em relação: é o lugar da aliança” (CIC 2563). Portanto, dizer que o Espírito transforma o coração significa que muda a vida como um todo para que toda ela seja eucarística. Essa é a única forma para não trair a Eucaristia.
E, nós, ao contrário, celebramos quase num estado de fuga das nossas responsabilidades existenciais. Comungamos simplesmente para cumprir um preceito. Distinguimos entre eucaristias solenes e ordinárias. Inventamos “Missas de cura e libertação” em busca de solução para nossos problemas individuais em detrimento da conversão existencial, pessoal e social, a que ela nos desafia. Saimos das missas como se nada acontecesse, pois nossas celebrações nos deixam indiferentes ou, pior ainda, desistimos de celebrar. Não nos deixamos contagiar pela experiência eucarística. E assim nada acontece. No entanto, a mesma teologia diz que “nada é mais subversivo na história do mundo do que celebrar a Eucaristia”. Porque Ela, em silêncio, fala-nos de uma lógica que se opõe diametralmente à do mundo: é a lógica do serviço contra a sede de poder. É a lógica do amor em vez do egoísmo. É a lógica da comunhão em contraposição ao individualismo. É a lógica da vida que vence a cultura da morte. É por isso que a Eucaristia é “revolucionária”. É a fonte vigorosa e inesgotável da vida que Deus compartilha conosco para assimilar-nos a Ele. Esse é a verdadeira cura da Eucaristia: a assimilação do Evangelho e a configuração com Jesus de Nazaré, o único projeto de vida que nos torna autenticamente humanos, à imagem e semelhança do Pai.
Por isso, depois da Eucaristia, já não podemos ser as mesmas pessoas. Dela dependem a beleza, a qualidade e a realização da nossa vida; a radicalidade e a coerência de nossas opções; a fidelidade, a perseverança e a generosidade do nosso serviço pastoral; a resistência e a resiliência diante dos desafios da missão e das perseguições de quem se opõe ao projeto de Deus. Giorgio la Pira, político italiano reconhecido por seu testemunho cristão (1907-1977), começava o dia com a celebração da Missa e nunca fugia depois da comunhão. Parava por longos e silenciosos momentos de adoração. Foi destes tempos de contemplação que surgiu o dinamismo da sua ação sempre “rica em fé, sempre cheia de profecia, disponível ao exercício da caridade e ao serviço aos mais pobres, comprometido com a realização do bem comum e a construção da paz universal”. A experiência ensina que por trás de uma celebração imperfeita há uma vida imperfeita. Por trás de um trabalho pastoral estéril há uma celebração estéril e vazia, minada pelo hábito, sem impulso generoso e gratuito. Atrás de desistências, abandonos, decepções e frustrações pode haver a ausência de uma autêntica experiência eucarística ou, pior ainda, a recusa dela em vista de uma adesão ao projeto que mundo oferece, assim como aconteceu com Judas na Última Ceia. O dinheiro, a carreira, o orgulho ferido, o interesse privado, o comodismo, o medo… podem falar mais alto quando o “demônio” do egoismo, do individualismo e da indiferença entra em nosso coração, nos manda levantar da mesa da Eucaristia e tomar distância de sua proposta de vida. Como na vida ordinária ninguém se sustenta sem se alimentar, assim acontece na militância cristã: não há futuro para quem não se alimenta de Cristo e não assimila todo dia seu projeto de vida.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)