A lição da fossa
Como vocês sabem, temos vivido momentos difíceis nestas últimas semanas por causa das abundantes chuvas. Como se não bastassem os alagamentos por falta de obras de drenagem e de redes pluviais, alguns dias atrás aconteceu o desmoronamento da fossa que recebe a água da cozinha do Projeto Legal de Marco Moura, Santa Rita, na Paraíba. O reparo não foi fácil. Por seis dias consecutivos, cinco pedreiros, liderados por Márcio, se desdobraram para reconstruí-la. Foi uma luta contra a água e a areia. No sexto dia, quando estávamos ao ponto de desistir, conseguiram dar um jeito. Agradeço-lhes de coração. Fizeram de tudo para resolver o problema, pois sabiam que aquela fossa era indispensável para garantir o funcionamento da cozinha que prepara dezenas de refeições por dia para as crianças e os adolescentes do Projeto Legal. Sua generosidade serviu para aliviar um pouco a indignação pelo descaso das autoridades que, nem sequer, apareceram para tomar conhecimento dos estragos que fizeram por causa de uma obra mal feita na rua. É dolorido constatar também a morosidade das instituições que poderiam ajudar e tardam em fazê-lo, como também a indiferença de quem, por vocação cristã, devia oferecer um pingo de empatia e solidariedade. Graças a Deus, a chuva deu uma trégua durante a obra e não faltou o carinho das pessoas comuns. Mas não é por isso que estou trazendo para vocês esta história. Sirvo-me dela para comentar o Evangelho de hoje que fala da vocação de Mateus, o cobrador de impostos (Mt 9,9-13). Tem muitas vidas que desmoronam e precipitam numa fossa até mais profunda do que a do Projeto. Dependendo da queda, subir pode se tornar uma empreitada quase impossível, sobretudo quando quem caiu está sozinho, não conta com ninguém e não tem os meios necessários para sair dela. Como é importante, nestas horas, a mão estendida de quem se oferece para ajudar ou, quando já não alcança por causa da profundidade da fossa, a coragem de descer na fossa para ajudar o/a outro/a a voltar para cima. Mateus conta que estava sentado à mesa dos cobradores de impostos. Aparentemente, tinha uma vida bem-sucedida, pois possuía poder e dinheiro para fazer o que bem entedia. Mas esta sensação de bem-estar era só fachada. Por dentro estava tudo desmoronado. A ganância por dinheiro tinha precipitado sua vida na fossa da corrupção e da roubalheira donde não conseguia mais sair. Mesmo cercado por muitas pessoas, não conhecia o amor. Tinha cúmplices de roubalheiras, mas não verdadeiros amigos. Era procurado porque tinha dinheiro e, pelo jeito, gostava de organizar banquetes em sua casa. Mesmo sendo judeu, era considerado impuro e traidor por se vender aos romanos. Os compatriotas o odiavam, pois cobrava imposto para os opressores e, como se não bastasse, os encarecia para garantir seu lucro. Como foi decisivo o encontro com Jesus. Como foram cruciais aquele olhar cheio de ternura e aquela mão estendida para arrancá-lo do fundo da fossa moral, espiritual e existencial em que estava afundado há muito tempo. Puxar para fora do abismo do pecado e devolver a dignidade e liberdade é a missão de Jesus e de quem pretende segui-lo. Pouco importa, se para fazer isso, precisa descer também na fossa, colocar o pé na lama e contaminar-se com tanta sujeira que não é tanto aquela de quem caiu, mas a imundície dos comentários e das murmurações preconceituosas dos “cidadãos de bem” que olham para este gesto de compaixão com olhar de desprezo: “Porque come com os cobradores de impostos e os pecadores?”; “Porque defende bandidos, protege prostitutas e anda com trombadinhas?” Tudo isso, a princípio, provoca sofrimento, sobretudo quando estes comentários saem da boca de “pessoas religiosas”, mas nada se compara com a alegria do resgate. Destas fossas cavadas pela injustiça, o preconceito, o individualismo e a falta de empatia, tem muitas pelo mundo afora. Tem multidões no fundo da fossa da miséria, que tem tamanho de um abismo que se aprofunda cada vez mais por causa da ganância de uma minoria. Tem as fossas das Cracolândias das nossas cidades que engolem sobretudo a juventude. A maioria dos presídios e centros socioeducativos parecem mais fossas onde se enterra a dignidade humana do que centros de ressignificação e ressocialização. Tem a fossa do sofrimento psíquico e da depressão que arranca a vontade de dar a volta por cima. Tem a fossa do Mar mediterrâneo que engole quem tenta atravessá-lo em busca de melhores condições de vida ou aquela do deserto na divisa entre México e Estados Unidos onde ficam para trás os corpos dos que ainda acreditam no Tio Sam. Tem as milhares de covas abertas para acolher precocemente as vítimas da violência, quase sempre pretas, jovens e moradoras de comunidades da periferia. Quantas fossas tem neste mundo abarrotadas de gente que pede ajuda para sair delas. Contudo, são poucas as pessoas que andam por suas beiras dispostas a estender a mão ou a descer nelas para ajudar a subir. O mundo prefere enterrá-las ou abrir outras fossas sempre mais longe dos olhos, pois afinal incomodam a vida apressada de quem não tem interesse em ajudar, sobretudo quando quem as habita sofre preconceitos e discriminações porque é pobre, tem problema mental, usa droga ou bebe, é sujo por dentro e por fora, tem uma extensa ficha criminal e conduz uma vida imoral. Aos fariseus que se escandalizam quando veem Jesus sentado à mesa com os pecadores, o Mestre responde: “Aprendei, pois, o que significa: ‘Quero misericórdia e não sacrifício.’’ De fato, eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores”.
Todo gesto de solidariedade vale, mas aprofunda a fossa se não serve para tirar as pessoas dela. O mundo, na realidade, precisa de uma reforma estrutural, de uma obra de terraplanagem, que não é passar o trator por cima das pessoas que sofrem, como fazem as intervenções de “limpeza social” para se livrarem dos ‘indesejáveis”, mas para derrubar as estruturas perversas que, em nome do lucro, acabam com tudo, fazem desmoronar terra e jogam vidas humanas na fossa da exclusão, do desespero, da miséria, da fome e da morte.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)