
A Pedra descartada se tornou Pedra Angular
A cena é perfeita para o teatro do absurdo. O drama é ainda maior porque não se trata de uma simples encenação, mas de um fato que continua acontecendo nos palcos da vida desmascarando um dos piores disparates da nossa sociedade: a criminalização de quem faz o bem. Por uma estranha e, sobretudo, maldosa inversão de valores, crime não é praticar o mal, mas fazer o bem. Pedro é preso e arrastado diante de um raivoso tribunal pelo simples fato de ter curado um paralítico que há tempo ficava na porta do templo pedindo ajuda. O cenário é impressionante: por um lado temos as “autoridades” com todo o poder e aparato policial, político, econômico e religioso de Israel. Faço questão de sublinhar esta aliança entre os poderes com o único objeto de defender seus interesses e praticar o mal. O pior é constatar que a adesão da religião não é para defender os interesses de Deus, como muitas vezes alegam os “religiosos”, mas por sede de poder e para não perder privilégios. Por outro lado, temos os “réus” Pedro e João, homens simples, pobres e desarmados que encaram aquele tribunal de cabeça erguida, com a dignidade de quem sabe que está agindo em sintonia com o Deus de Jesus. “Normalmente, as pessoas humildes abaixam a cabeça, pedem perdão e esperam o castigo. Aqui acontece o inaudito. Os acusados transformam-se em acusadores. Pedro não perde a ocasião de dar testemunho de Jesus” (Nota da Bíblia Ave Maria). A defesa do apóstolo soa como uma denúncia que desmascara a perversão de seus perseguidores: “Hoje estamos sendo interrogados por termos feito o bem a um enfermo e pelo modo como foi curado. Ficai, pois, sabendo todos vós e todo o povo de Israel: é pelo nome de Jesus Cristo de Nazaré – aquele que vós crucificastes e que Deus ressuscitou dos mortos – que este homem está curado diante de vós. Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes e que se tornou a pedra angular. Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos”” (At 4,1-12).
Esta cena é de uma atualidade surpreendente. Repete-se repete todo dia. É motivo de chacota e até de ameaças e violentas perseguições quem faz o bem em nome de Jesus de Nazaré. É considerado “criminoso” quem luta para o acesso universal aos direitos humanos; quem busca uma sociedade justa, acolhedora e solidária; que se empenha para a preservação do ambiente; quem luta pelos direitos dos/as trabalhadores/as; quem solidariza com os/as excluídos; quem estende a mão para as pessoas que vivem na escravidão da dependência química; quem se doa para oportunizar caminhos de ressignificação da vida e processos de ressocialização; quem se esforça de olhar com olhos de misericórdia buscando enxergar o melhor que ainda persiste para além do mal praticado… Em suma, é criminalizado quem simplesmente decide de ser essencialmente humano e autenticamente cristão. Processos sumários contra quem defende e promove a dignidade humana são diariamente celebrados nos programas de televisão que lucram com a divulgação da violência como também linchamentos nas “praças” das redes sociais acontecem contra quem busca construir um mundo mais justo e mais fraterno. O pior é que, além de criminalizar quem faz bem, há pessoas que torcem para que o bem não dê certo e chegam até a sabotar a sua realização somente pelo gosto de desqualificar publicamente o trabalho generoso que as pessoas de bem vem realizando. A maioria das pessoas que militam nas pastorais e nos movimentos sociais sabe do que estou falando, pois, com certeza, já passaram por esse processo de criminalização.
O apóstolo Pedro não se deixa intimidar e com a coragem que lhe vem do Espírito do Ressuscitado declara enfaticamente que à origem de sua ação tem Jesus de Nazaré. A pedra fundante de suas opções é justamente aquela Pedra que foi descartada por ter se tornado pedra de tropeço de projetos de vida e de mundo que não têm nada a ver com a vontade de Deus. É justamente a escolha de fundamentar sua vida no Evangelho que o leva a fazer o bem. Age em nome de Jesus de Nazaré. Passar fazendo o bem é a única maneira de viver como Seu discípulo.
Confesso que fico admirado com a genialidade do evangelista Lucas por decidir escrever dois livros: o Evangelho e os Atos dos Apóstolos. É uma única obra em dois atos entre os quais existe uma relação de continuidade e identificação. No primeiro contemplamos a ação de Jesus que, a pedido de Deus, passa pelo mundo fazendo o bem, mesmo sendo criminalizado e até condenado à morte na cruz. Mas , a partir de Sua ressurreição, surge a comunidade cristã que realiza o segundo ato em perfeita sintonia com o Mestre, passando pelo mundo fazendo e bem custe o que custar. Essa obra não está completa. Falta o livro dos nossos Atos. Cada um/a de nós o escreva juntamente com a comunidade continuando fazendo o bem por onde passar, do mesmo Jeito de Jesus e das primeiras comunidades. Não se preocupem se forem criminalizados/as. Deus realizará o Seu o Reino graças a todas as pessoas que, como Jesus, são rejeitados/as pelo mundo simplesmente porque amam como Deus ama.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)