A Profecia de Lázaro
O encontro mais importante da minha vida foi com Lázaro, cuja história, contada pela comunidade do Evangelista Lucas (Lc 16,19-31) fala por milhões de seres humanos “descartados” por um sistema que elege o lucro como prioridade absoluta em detrimento da vida em todas suas manifestações.
Quem me levou até ele foi Jesus de Nazaré. Foi seguindo Seus passos que o encontrei na rua, sentado na porta da casa de um rico que gostava de festas e esbanjava riquezas. Ninguém lhe dava a mínima atenção. Era um descartado, tratado com indiferença ou distratado. Não tinha direito a nada, nem a ser chamado pelo nome. Seu codinome era “morador de rua”, mas havia quem o apelidasse com desprezo de “vagabundo”. Até comida lhe era negada. Alimentava-se com as migalhas que caiam da mesa dos suntuosos banquetes do rico esbanjador.
O encontro com Jesus, porém, fez da sua história uma página de Evangelho. O ponto onde ele costumava ficar na porta do rico esbanjador tornou-se uma etapa obrigatória para quem quiser se tornar discípulo de Jesus de Nazaré. O seu lugar na rua virou uma “basílica”, a “casa do rei”, onde o Senhor da História que se fez servo da humanidade gosta de plantar sua tenda. A convivência com ele e a partilha de seu sofrimento fizeram de seu ponto na calçada a melhor casa de formação cristã. A atitude diante de sua condição de exclusão passou a ser a prova decisiva da adesão ao Evangelho sem descontos e sem manipulações. A decisão de compartilhar seu sofrimento e de se engajar com ele na militância pela sua libertação virou o Kairós, a oportunidade de Deus para ser gente de verdade.
Do dia em que Jesus me oportunizou esta experiência, os “Lázaros” que encontro no dia-a-dia viraram os meus melhores professores de teologia e mestres de espiritualidade. É através deles que aprendo a conhecer a Deus e a me apaixonar por Ele. Sentado ao seu lado nas ruas das periferias ou nas cadeias, nas unidades socioeducativas ou nos terrenos baldios onde a vida é maltratada, vaporizada aos poucos pela fumaça do crack ou é brutalmente interrompida à bala, vejo com os meus próprios olhos, sem que ninguém me conte, um Deus indignado diante do descaso com a vida de seus filhos/as maltratados/as, com as vísceras laceradas pela dor, o coração abarrotado de compaixão e os olhos cheios de lágrimas. Através de Lázaro e seus companheiros de sofrimento, encontro o Deus que preza o culto que gera vida, os ritos do cuidado, a profecia de que quem não têm voz, os paramentos que cobrem as feridas, os templos que acolhem e abrigam, os cantos que animam as lutas e os louvores que o glorificam pelas conquistas por justiça, paz e solidariedade; o Pai e a Mãe de todos/as, sobretudo dos marginalizados/as; o Libertador dos/as oprimidos/as que não fica de camarote, mas se envolve, bota o pé na lama para chegar perto do/a empobrecido/a, levantá-lo/a da poeira e devolvê-lo/a à vida com dignidade; o parceiro dos/as pequenos/as; Aquele que ama os/as descartados/as ao ponto de assumir seus traços sofridos e se sentir glorificado quando o infeliz é erguido da miséria e é respeitado como gente. Ao pisar no mundo dos pobres deparo-me com um Deus engajado, totalmente diferente do deus com o rosto deformado a nosso gosto, adocicado e manipulado para “consagrar” os privilégios, adormecer as consciências, acariciar o narcisismo, referendar as manias de poder e manter o “status quo”.
Do ponto de vista do pobre conheço um Deus surpreendente que revira as histórias marcadas pela injustiça. O rico esbanjador que tem nome reconhecido aos olhos do mundo torna-se um anônimo diante d´Ele, enquanto o/a pobre “condenado/a ao anonimato” é chamado/a por Ele pelo nome. O Deus de Jesus Cristo assume publicamente a paternidade/maternidade dele/a. Não quer saber se merece, se é um cara direito, se vai dar bons resultados, frequenta a igreja ou tem antecedentes criminais. Para Ele é Lázaro, o “socorrido de Deus”.
Fico admirado com o tamanho do amor que Deus tem pelos/as mais pobres. Ele os/as frequenta. Não espera eles/as procurarem, sai à sua procura. Não fala deles/as por ouvir dizer. Conhece suas histórias pessoalmente. Nada de conversa genérica, de papo furado, de promessas descumpridas, de opções de boca para fora, de números frios e de estatísticas sem rostos. Por trás da paixão de Deus pelos/as mais pobres tem o encontro pessoal, o contato direto, o toque cheio de ternura, a empatia, a compaixão e a solidariedade concreta. Esse é o rosto do Deus de Jesus Cristo cujo semblante aflora com clareza nos traços de Lázaro e de quantos/as, como ele, vivem a dramática experiência da exclusão.
A condição de miséria dos pobres é um dos gritos mais proféticos que eu ouvi até agora. A sua dura realidade desinstala-me de mim mesmo, abre meus olhos, me alerta contra todo tipo de manipulação, desmascara meus prejuízos e me mostra as mazelas que geram o descaso com a vida. A história de Lázaro (e das multidões de empobrecidos/as) derruba a visão teológica perversa que faz da prosperidade o prêmio para os “justos” e da miséria o castigo para os “pecadores”. Desmantela também o preconceito que associa a pobreza à indolência e descortina o báratro que existe por atrás da cultura da exclusão. A monte da miséria de Lázaro, há uma voragem profunda cavada pela voracidade de uma minoria que está disposta a qualquer coisa para acumular riquezas às custas de uma multidão de Lázaros. Por trás de tudo, tem a desigualdade que não pode ser encarada como natural, mas como aberração a ser erradicada. Como o maior pecado a ser extirpado. Não basta aliviar as feridas com ações assistencialistas que procuram mitigar os efeitos maléficos deixados pela injustiça estrutural. Esse tipo de caridade é um meio de manutenção do “status quo”, sem nenhuma incidência sócio transformadora. É necessário mudar o sistema. Em vista disso, é urgente resgatar a profecia, a coragem da renúncia e a ousadia do anúncio, a dimensão macro política da caridade, acentuando sua necessária ligação com a prática da justiça social e a transformação das estruturas injustas. Em suma, não dá para ajudar Lázaro e seus/suas companheiros/suas sem se tornar um militante engajado na luta por direitos humanos e um mundo mais justo.
Enfim, o confronto com Lázaro constitui o questionamento mais contundente ao meu estilo de vida. Numa sociedade individualista e indiferente, fortemente ébria de consumo e de hedonismo, de riqueza e de abundância, de aparência e de narcisismo, Lázaro e as multidões de seus/suas companheiros/as me interpelam a não cair nas garras do consumismo, a não ceder à tentação do comodismo e a ter um comportamento sóbrio, simples, equilibrado, linear, capaz de entender e viver o que é realmente importante e essencial. É fácil apontar o dedo contra o rico esbanjador e denunciar sua insensibilidade, mas eu também acabo me tornando um esbanjador de recursos ao não controlar a minha voracidade. A mudança do mundo tem um único ponto de partida: a minha conversão a um estilo de vida pautado na simplicidade e no cuidado com a vida. Tudo isso não tem nada de ideológico. Seu fundamento é exclusivamente teológico. Brota do jeito de SER de Deus que ama tanto a Vida que enviou seu Filho amado para que todos/as a possuam em abundância e com dignidade. A heresia não habita em quem grita com indignação diante da condição de Lázaro, mas em que, alegando uma suposta prudência para não sair de sua “zona de conforto”, prefere o silêncio da omissão.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)