
A Voz da Memória: Bakhita e a Força do Testemunho
Carta para Dom Luiz Fernando
Nossa querida África, meu amigo, sempre. Hoje penso e sinto quantas ligações tenho com a Bakhita: o mesmo dia de aniversário meu é o dia da morte dela, o Sudão do Sul, as cidades de Verona e Schio, na Itália e o tema do colonialismo. São histórias de gente, deste mundo e do além, que se entrelaçam para nos lembrar que temos muito mais em comum do que aquilo que nos separa.
Sabia que Bakhita, no fim da vida, ditou as suas próprias memórias? Ela quis registrar como sentia tudo o que ocorreu com ela. Infelizmente, em vida, algumas Canossianas — congregação religiosa de Bakhita na Itália —, nos anos 30 e 40, assim como muitos, acreditavam que o Fascismo iria proteger a fé, trazer prosperidade econômica e contribuir para a expansão do Catolicismo na África.
Devido a isso, ela foi conduzida por Mussolini, sendo obrigada a viajar com ele por toda a Itália para convencer o país a fazer o esforço de guerra no Chifre da África. Depois que retornou a Schio, ajudou e consolou toda a cidade por conta dos bombardeios dos Aliados e da fome que veio no fim da guerra, com a Itália perdedora.
Ela havia aprendido duramente que sua memória não poderia ser sequestrada pelos outros. A Irmã Ida Zanolini escreveu Storia Meravigliosa sobre Bakhita, e a obra caiu nas graças de Mussolini, que fez da jovem irmã sudanesa a africana a ser exibida como exemplo da obra civilizatória da Itália fascista.
Bakhita, já perto do fim, não queria ser recordada por isso. Ela queria falar sobre si, sobre seu povo, sobre a escravidão e sobre como transformou seu destino.
As memórias de Bakhita me ensinaram como é importante ajudarmos as pessoas a serem aquelas que falam sobre si e sobre o mundo.
Memórias missionárias em Cabo Delgado, contadas pelo senhor, meu amigo, me dão muita felicidade. É o senhor falando de si e de todos os seus. Fez ecoar sua voz e a de tantos, a partir de sua disposição e esforço.
É isso.
Como Bakhita, você pôde dizer. E irá fazer isso ainda mais.
Patrícia Teixeira Santos
Dep. História UNIFESP/PPGH UFAM