A Voz da Verdade
Jesus está em plena atividade. A sua missão provoca várias reações. Uns são tomados de admiração por aquilo que diz e faz. Outros ficam perplexos a seu respeito por causa de suas humildes origens. Custam acreditar que o filho do carpinteiro e de Maria possa ser um profeta. Outros ainda chegam a pensar que se trate de Elias ou de João Batista ressuscitado dos mortos. Até Herodes se envolve nesta conversa e dá seu palpite: “Ele é João Batista. Mandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!” (Mc 6,16). O tirano estava convencido que havia se livrado do profeta, mas provavelmente a cena daquele crime hediondo cometido a sangue frio para satisfazer o desejo de vingança da amante que usa a filha para conseguir o que deseja, tornara-se um pesadelo. Persegue-o até perder o sono. Mesmo degolado, João continua falando. Suas duras palavras ecoam entre as paredes do palácio atormentando-o. É interessante reparar que Herodes estima João Batista. Considera-o justo e santo. Sabe que está falando a verdade. Por causa de sua estima, ele o “preserva”. Mantê-lo na cadeia é a melhor maneira para protegê-lo do desejo de vingança de Herodiades. Ele o ouve de bom grado. Há algo nesse homem que o interpela, que o traz de volta a si mesmo. João é aquela voz que Herodes sabe que tem dentro de si e que a corrupção do poder gostaria de silenciar. Herodiades, ao contrário, não quer ouvi-la, Não vê a hora de acabar com ele. “O dia oportuno chega” (Mc 6,21), escreve Marcos. Oportuno para quem? Não para Herodiades, que pode finalmente colocar em prática seu plano de vingança, mas para João, que pode finalmente vir a testemunhar com sua vida sua adesão total e incondicional à verdade.
Embebedado não só pela bebida, mas sobretudo pelo poder, Herodes exagera e promete demais. Ele diz à filha de Herodiades que, se dançar em sua honra, pode conseguir o que quiser até metade de seu reino. Herodes é vítima de sua própria arrogância porque a moça instada pela mãe lhe pedirá o preço mais caro: renunciar à voz de João. Teria sido menos dispendioso para ele abrir mão de metade de suas terras, mas o pedido da bailarina não só corta a cabeça de João Batista, mas a única oportunidade do seu coração confrontar-se com a verdade (Irmão Elias).
A tragédia é que o pedido não pode ser rejeitado. Estão em jogo o orgulho e o prestígio de Herodes. Deve consentir. Marcos diz que fica “muito aflito” (cf. v. 26), sabe que está abrindo mão de algo muito importante, uma relação que, embora áspera, se mostra capaz de chegar até o íntimo do coração e colocá-lo em discussão. Assim, João torna-se testemunha da verdade, Marcos narra esse movimento: o pedido parte de Herodiades, passa por sua filha e chega a Herodes. De Herodes passa à guarda, e depois da guarda volta a Herodes, à menina e, finalmente, à mãe. João morre por causa de uma perversa cadeia de corrupção, complô e engano (irmão Elias).
João pode estar morto, mas sua profecia continua viva como nunca, reavivada à distância do tempo, nos comentários dos seus súditos a respeito de Jesus de Nazaré que tanto lhe lembra a coragem do profeta que mandara matar. Herodes fica com medo. A sua insegurança é a prova contindente do poder da Palavra, da força da profecia. A Palavra é sempre eficaz, inclusive naqueles que a recusam. Por onde passa deixa sua marca. Quem a acolhe vive e quem a recusa, mesmo se for poderoso, perde o sossego. Apesar de esbanjarem arrogância, os tiranos temem a ousadia dos profetas e fazem de tudo para se livrarem deles. Engana-se quem pensa que matando os profetas se livra da profecia. Esta continua impertérrita o seu caminho questionando, incomodando, desmascarando, denunciando, libertando, apontando caminhos de conversão e libertação, promovendo a vida, construindo a paz e implantando a justiça. Com a morte dos profetas a profecia não é enterrada, mas semeada e, pelo poder criativo que ela possui, se multiplica por outros cantos e em outras pessoas, incomodando quem a recusa e fazendo brotar uma nova vida em quem a acolhe em seu coração. O Evangelho não admite acordos, ajustes e descontos para amenizar o impacto na vida das pessoas, minimizar seus efeitos nas estruturas da sociedade e manter privilégios. O anúncio do Reino de Deus e de suas exigências se choca inexoravelmente com a arrogância dos poderosos e a perversidade dos projetos religiosos, políticos econômicos e sociais que estão a serviço da idolatria e da morte. Se este conflito não acontecer, é bom se questionar sobre a autenticidade da nossa missão. “A perseguição é algo necessário na Igreja – dizia São Oscar Romero -. Sabem por quê? Porque a verdade sempre é perseguida. […] Se alguém vive um cristianismo muito bom, mas que não se conecta com nosso tempo, não denuncia as injustiças, não proclama o Reino de Deus com valentia, não combate os pecados da humanidade, consente com as coisas erradas para estar de bem com certas classes sociais, com os pecados dessas classes, está pecando, está traindo sua missão, não está cumprindo seu dever. A Igreja existe para a conversão das pessoas, não para dizer que tudo o que fazem está bom; por isso, naturalmente, desagrada. Todo aquele que nos corrige, desagrada”. Precisamos hoje como nunca de vozes proféticas que não tem medo de “perder a cabeça”, o prestígio e o poder em nome da verdade. Chega de omissão. “Não se opor ao erro é aprová-lo, não defender a verdade é negá-la!” (São Tomás de Aquino). Deus nos perdoe quando nos acovardamos por medo de arriscar a pele. (pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)