“Armemos ciladas ao justo, porque sua presença nos incomoda!”
Ambos os textos bíblicos de hoje, Sabedoria 2,1.12-22 e João 7,1-2.10.25-30, falam de tramas para matar o “justo”. Alguns de nós já passaram por essa experiência e conhecem bem o sofrimento físico e psicológico advindo das ameaças de morte ou de campanhas difamatórias. Viver à luz da Palavra de Deus, pautando-se pela verdade, justiça, misericórdia e paz, não garante uma vida sossegada, amada e respeitada por todos. Quem se coloca a serviço do Reino de Deus deve levar em conta o conflito e a perseguição. Sempre digo isso a quem entra nas pastorais sociais. Se isso não acontece, pode-se desconfiar que algo está errado no nosso serviço.
O Evangelho, quando levado a sério, é uma espada de dois gumes: corta tanto na própria carne quanto na do mundo. Nem sempre todos estão dispostos aos cortes necessários para vivê-lo integralmente. Na lógica do “faz de conta”, omite-se ou disfarça-se o que incomoda. Quem ousa denunciar, sofre duramente. Desde sempre, os ímpios e os “impastores” parecem levar a melhor parte. Viver “evangelicamente” é uma escolha corajosa, a única que nos permite prolongar a ação de Deus e construir com Ele Seu Reino. Porém, é uma opção que pode levar à condenação à morte: máfias, ditaduras, poderosos consórcios econômicos e políticos, fanatismos e fundamentalismos religiosos tendem a aniquilar aqueles que amam a justiça de Deus, que não se assemelha à nossa. A longa lista de mártires é prova disso.
Também Jesus passou por isso. Ao falar com ousadia e clareza a verdade, despertou nos poderosos a intenção de prendê-lo e eliminá-lo. Mesmo sabendo do clima de hostilidade e do risco de ser preso, retornou a Jerusalém para proclamar a verdadeira face de Deus. Jamais poderíamos dizer que Ele pecou contra a virtude da prudência. Mesmo tomando precauções, não se afastou, não se acovardou, não se omitiu e não fugiu para outro país para salvar a própria pele. Tinha uma missão clara a cumprir e pretendeu levá-la até o fim, com o objetivo de acabar com toda imagem falsa do Pai. A deformação do rosto de Deus traz e continua trazendo graves ameaças à vida e à dignidade dos seres humanos, sobretudo aos mais pobres. Jesus é o único que conhece verdadeiramente a face de Deus, enquanto aqueles que o enfrentavam, embora se julgassem religiosos, na realidade nada sabiam do verdadeiro Deus. Sua forte declaração abalou seus contemporâneos e nos provoca ainda hoje. Nunca o rosto de Deus foi tão manipulado e deformado como nos nossos dias.
Existe uma equação perversa: quanto mais aumentam as denominações cristãs, mais se acentua o desconhecimento de Deus. É uma ignorância religiosa proposital, sobretudo quando se elimina Jesus de Nazaré ou é revestido de “paramentos” que não dizem respeito ao exercício de seu sacerdócio. O único paramento sacerdotal citado no Evangelho é o avental, peça esquecida no enxoval dos padres, conforme Dom Tonino Bello. O Nazareno continua incomodando, e o Deus revelado por ele não agrada. Na realidade, Jesus é imprescindível para conhecer o Pai. Só Ele o conhece bem e veio nos falar de Sua intimidade. Desafiou a morte para convencer cada ser humano da verdade de suas declarações. E Ele virá à morte, determinado como nunca, na tentativa de não deixar que nossos medos, nossos pecados, nossas mentiras, nossa fragilidade distorçam o rosto belo e luminoso do Pai. Não permitamos que tanta força, tanta luz, tanta paixão caiam em ouvidos surdos ou em mãos sujas de sangue. Trabalhemos arduamente durante esta Quaresma para redescobrir o rosto do Deus de Jesus Cristo. (Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)