As Balas Perdidas acham quase sempre Crianças, Adolescentes e Jovens Pretos/as, Pobres e de Periferia
Dijalma tinha 11 anos. Foi baleado e morto ontem, dia 12 de julho, durante uma ação policial em um condomínio do Projeto Minha Casa Minha Vida, em Maricá, no Rio de Janeiro, quando saia de casa para ir à escola. Dizem que foi e enésima “bala perdida” num confronto entre policiais e traficantes. Conversa fiada de nossa hipocrisia. Não existe bala perdida. Toda bala tem remetente. Todo disparo tem autoria. Se ela anda solta por aí é porque alguém a colocou na arma e puxou o gatilho. Uma pistola pode até disparar de maneira acidental, mas alguém deve manuseá-la. Dar nome e rosto aos autores dos disparos é um passo indispensável para acabar com a impunidade.
Não existe bala perdida. Ela sempre acha alguém disposto a dispará-la e uma vítima no meio de seu caminho. Perdido mesmo está quem se obstina a andar armado, quem espalha o terror nas comunidades ou sobe os morros come se estivesse indo para uma guerra e atira para todos os lados sem se importar com a vida alheia.
Não existe bala perdida. Perdido está o governo que não consegue desenvolver uma política de segurança pública capaz de desarmar a sociedade e eficaz na construção da cultura da paz. Perdidas estão as instituições que estão todas presentes ao redor do cadáver na hora da perícia, mas totalmente ausentes na hora da prevenção e da proteção das vidas inocentes. Perdidos estamos todos nós que não sabemos para quem recorrer e onde mais se esconder. Perdidas no meio do tiroteio estão nossas crianças que, para salvar a própria pele, são obrigadas a ficarem trancadas dentro de casa, mesmo sabendo que também entre as quatro paredes domésticas não estão totalmente a salvo da violência. Djalma não é uma vítima isolada. A ONG Rio da Paz, que acompanha desde 2007 casos de crianças e adolescentes de até 14 anos mortos por arma de fogo no Rio, afirmou que Dijalma foi a oitava morte registrada em 2023, em sete meses.
Não existe bala perdida. Como diz Gabriel o pensador, a bala é perdida por natureza, até quando é usada em legítima defesa e no suicídio. Ela nasceu para fazer estragos, sobretudo quando cai nas mãos de quem não sabe dar valor à vida. Ela não pode andar solta espalhando morte. Tem que ser tirada de circulação. A única bala que tem direito de cidadania é aquela que tem sabor de mel e não de fel. “Caderno, pasta, lápis e borracha talvez seja a solução. Ao invés de dar tapa, estenda sua mão, dê mais carinho e atenção. Troque o mal pelo bem e o bem tu terás. Um futuro melhor tão repleto de paz” (Leandro Sapucahy)
Não existe bala perdida. Quem perde somos todos nós quando nos acostumamos à violência e desistimos de lutar em defesa da vida e da paz.
Hoje celebramos 33 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda estamos perdidos. Muitas crianças e adolescentes nunca alcançarão esta idade, pois suas vidas são precocemente ceifadas pela violência, a fome, a negligência e o descaso. Essa chacina de inocentes nos envergonha como seres humanos. A única maneira para reparar é nosso compromisso em defesa e promoção dos direitos humanos das crianças e adolescentes. “Nos territórios onde há superposição de carências, ou seja, onde a renda é baixa, as famílias não são apoiadas, os direitos são pisoteados, falta saneamento, não há vaga em escola e as escolas são despreparadas, as políticas públicas são precárias, a vitimização violenta de jovens tende a ser maior. A invisibilidade da infância e adolescência nas políticas públicas transforma as periferias em territórios dominados pelas organizações criminosas e alimenta a perspectiva da repressão. Se falha a política pública, entram o crime organizado, as milícias e a polícia. Às vezes falha a escola, falha a saúde e a moradia, então entra em cena o aparato repressivo. Dessa forma, aquilo que é um problema de política se transforma num problema de polícia” (Karyna Sposato).
Infelizmente, Dijalma não resistiu. Nós lhe prometemos que resistiremos até a última gota de sangue. A violência não prevalecerá. A paz é fruto da proteção integral. Somente o reconhecimento da dignidade humana e a garantia de acesso a tudo aquilo que diz respeito ao desenvolvimento integral das crianças e adolescentes contribuem efetivamente à formação de cidadãos/ãs éticos/as, competentes, solidários/as, responsáveis, emancipados/as, protagonistas, comprometidos/as com o bem comum, com a justiça e a paz.
Djalma,presente!
(Padre Xavier Paolillo, Missionário Comboniano, em nome da Pastoral do Menor da Arquidiocese da Paraíba e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos dom Oscar Romero)