Crianças Inocentes: Sonho de Deus e pesadelo de Herodes
Uma sensação ruim toma conta do presépio. A atmosfera de Natal dura pouco. As luzes se apagam de repente. Não se ouvem mais os cantos de alegria. Os pastores já voltaram às suas ocupações. Até os Magos…
Crianças do Projeto Legal fazem seu presépio vivo
Até os Magos que vieram de longe voltaram para casa. É tarde da noite. Maria, José e a Criança aproveitam para descansar. Mas no ar respira-se uma atmosfera ruim. O encrenqueiro de plantão está prestes a acabar com a festa. Herodes está enfurecido. Ele se sente ameaçado pela criança nascida em Belém. Decide acabar com Ele. Ordena uma chacina de crianças menores de 2 anos. Ninguém esperava por isso. Deus está em perigo e é forçado a fugir no meio da noite. A sorte d’Ele está nas mãos de José. O Salvador da humanidade precisa de um ser humano para ser colocado a salvo. A cena é forte. É um mergulho na parte trágica da história. Funciona como um filtro. Ajuda a preservar o mistério da encarnação de temperos sentimentais que estimulam a emoção, mas não provocam conversão.
Primeiro, há um sonho. Um anjo aparece para José enquanto dorme para avisá-lo do plano diabólico de Herodes. A notícia é chocante, mas ainda mais difícil é a tarefa à qual José é chamado. A cuidar do Menino Jesus não será um exército de anjos, mas é ele, o homem que não diz uma palavra e parece andar a reboque da história. É ele quem deverá assumir a responsabilidade pelo destino de Deus.
José poderia ter fugido sozinho ou virado para o outro lado e continuado a dormir, como muitos fazem. É o torpor da indiferença que acomete quem consegue ficar quieto no seu canto, enquanto o grito de dor ecoa das ruas lotadas de pessoas sem-teto, de barcos transbordantes de migrantes, de favelas ou campos de refugiados, de zonas de guerra ou dos cantos marcados pela miséria, de inocentes massacrados pelo egoísmo humano. Enquanto os ‘bons” dormem, Herodes fica acordado, imerso em seus pensamentos perversos e ocupado com seus planos diabólicos. Ele sempre age contando com cumplicidades de malvados ou lucrando com a negligência dos omissos e dos ingênuos.
Mas José não pensa duas vezes. Ele acorda imediatamente, pega consigo Maria e o Menino, a Criança, e parte. Quais são as garantias de sucesso? Nenhuma. Ele sai sem um objetivo certo. Não tem uma rota, nem endereço seguros. Não tem meios para enfrentar o poder econômico e bélico de Herodes. Nem sabe quando vai poder voltar. Parte confiando mais uma vez apenas num sonho, o mesmo que Deus encarna naquele frágil Menino.
Isso é inacreditável. Antes mesmo de salvar, Deus é salvo por José. Aqui está a lição de Natal, que se revela na noite escura. Deus pode nascer e sobreviver na história humana apenas se ele encontrar alguém disposto a recebê-lo e cuidar d’ Ele, pronto para correr riscos para ajudá-Lo a salvar a vida da humanidade. Não é por acaso que se faz carne na fragilidade de uma criança pobre em um contexto de periferia extrema. Sua sorte e aquela dos pobres, com quem faz questão de identificar-se, estão em mãos humanas, simples, abertas, desarmadas, pertencentes a pessoas que, dotadas de amor extraordinariamente generoso, abrem suas vidas e a disponibilizam para aqueles que precisam de proteção. Seus destinos e os dos pequenos pertencem a sonhadores que, como José, nunca desistem do sonho de ver o mundo roubado das garras de Herodes e devolvido aos cuidados das mãos maternas e paternas de Deus.
Tudo acontece à noite. Nem mesmo Deus é poupado da dura experiência da noite. Esperávamos que a aurora de Natal anunciasse um dia de luz sem fim. Mas a noite continua lá, porque Herodes ainda está firme e forte, solidamente sentado no trono de nossas estruturas e de nossos corações, seja por participação direta nas suas maldades, seja pela nossa omissão. O Natal não traz imunidade contra a noite, mas a certeza da luz em plena noite. “Deus não protege do deserto, mas dá força no deserto. Ele não salva da noite, mas na noite” (Ermes Ronchi). É na escuridão da noite que as pessoas vêem a luz. Portanto, aqueles que confiam em Deus e entram em harmonia com seu sonho não esperem a garantia contra os momentos sombrios da vida, mas a certeza de poder contar com Sua luz na escuridão mais intensa. José poderia ter esperado as primeiras luzes do dia. Com a luz do sol as coisas teriam sido muito mais fáceis. Mas ele sai imediatamente, mesmo que não esteja tudo claro para ele. “Ele tem o máximo de luz para dar o primeiro passo. Ele tem tanta força quanto lhe basta para encarar a primeira noite. José só precisa de um Deus que cruza Seu respiro com os três prófugos para saber que a estrada vai para casa, mesmo que passe pelo distante Egito. Basta-lhe saber que na história há um fio vermelho que está e continua firme nas mãos de Deus. José representa todos os justos da terra, homens e mulheres que, assumindo o papel de cuidar dos outros/as, confiam no amor e vivem superando medos e fatigas, pois sabem e assumem que sua tarefa suprema no mundo é preservar vidas com suas próprias vidas. E assim o fazem, concretos e ao mesmo tempo sonhadores; inermes, mas bem mais fortes do que qualquer faraó” (Ermes Ronchi).
Seguindo seu exemplo, coloquemos nossas vidas à disposição para “salvar a vida” de Deus que sofre na carne das pessoas vitimizadas, que encontramos no nosso caminho, sobretudo de crianças e adolescentes empobrecidos/as. Herodes é forte, mas juntos/as podemos derrotá-lo se continuarmos sintonizados/as com o sonho de Deus.
Xavier Paolillo, coordenador do Projeto Legal
Fotos: Sem Fronteiras/arquivo comboniano e pixabay.com