
Cuidado com o “fogo amigo” (Jo 15,26-16,4)
Jesus nunca prometeu vida fácil e sossegada para seus discípulos. Ao contrário, sempre fez questão de lembrar que sofreriam todo tipo de perseguição por causa do Evangelho. Mas nunca podíamos imaginar que a pior perseguição partiria dos ambientes que mais deveriam ter predisposição a acolher a Sua Palavra: “Expulsar-vos-ão das sinagogas – alerta Jesus -, e virá a hora em que aquele que vos matará julgará estar prestando culto a Deus”. Parece uma afirmação absurda, mas nunca foi tão real e verdadeira como nos dias de hoje. O maior desafio dos/as discípulos/as de Jesus não é a perseguição por parte do mundo, mas a hostilidade dos próprios cristãos. Quem está empenhado em pastorais de fronteira, aquelas que aproximam e acolhem marginalizados/as, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, mães solteiras, dependentes químicos a apenado/as, depara-se continuamente com reações adversas que, além de vir a sociedade como um todo, partem também de setores das comunidades cristãs. A solidariedade com os/as excluídos/as, em vez de ser uma atitude “irrenunciável” para aqueles/as que aceitam seguir Jesus, está se tornando cada vez mais motivo de escândalo e perseguição. Recentemente fui convidado para um programa de rádio. A entrevista foi ao vivo. Falou-se do trabalho missionário da Pastoral do Menor e Carcerária. O assunto é polêmico. Não esperava elogios. Quem passa a vida cuidando pastoralmente de detentos, povo de rua e “menores delinquentes” sabe que vai ter muitas dores de cabeça. O conflito é inevitável. As dúvidas são compreensíveis. Mas não esperava o tom agressivo de quase todos os ouvintes. Estava numa rádio católica, então imaginei que os ouvintes também fossem católicos. Mas quase todo mundo fez afirmações preconceituosas. Um deles me disse que estava perdendo tempo e desviando da minha função. “Era melhor ficar na igreja e cuidar das coisas de Deus”, disse com tom alterado. Outro me acusou de ser defensor de criminosos. O golpe mais baixo veio de alguém que se identificou como diácono permanente: “A Igreja está se desviando de sua missão e perdendo de vista sua doutrina”, esbravejou em postura de inquisidor. E não contente com isso, acrescentou: “Se você realmente se importa com eles, leve-os para sua casa e adote-os”.
Confesso que não fiquei muito surpreso. Escuto comentários afins há mais de trinta anos. E não são exclusividade brasileira. Estas conversas se espalharam pelo mundo afora. Na Europa, por exemplo, as comunidades que se colocam ao lado dos menos favorecidos, especialmente os imigrantes, enfrentam o mesmo “fogo amigo”.
São reações que chegam a abalar a nossa fé. Mas não podemos esquecer que também Jesus passou por isso. Suas opções foram motivo de escândalo, principalmente quando questionava o legalismo e o tradicionalismo das autoridades religiosas da época e denunciava os abusos praticados pelos poderosos. Desde o início de sua missão, demonstrou predileção pelos pobres e excluídos. Tornou-se próximo de todos aqueles que viviam à margem da sociedade. Entrou nas casas dos “impuros” e se sentou à mesa com eles. Abraçou os leprosos e pegou as prostitutas pela mão. Foi difamado por fazer-se próximo dos pecadores. Foi considerado um impostor por aqueles que se achavam os legítimos guardiães da herança divina. Arrebatou das mãos dos falsos pastores o controle do acesso à salvação, abrindo as portas do Reino a todos sem distinção, como fez do alto da Cruz quando não hesitou em levar para casa um dos perigosos bandidos que imploravam sua misericórdia (Lc 23,42-43).
Quem lê atentamente os Evangelhos não pode ter dúvidas: Jesus é o rosto de um Deus é misericordioso e compassivo, que rompe barreiras e se faz próximo de todos, sem distinção.
Assimilar esta verdade não é um desafio só para os pagãos, mas também para os cristãos, especialmente para aqueles que insistem em moldar um Deus conforme seus gostos, interesses e preconceitos e estão dispostos a caluniar, infamar e até a “matar” se for necessário, para defendê-lo, porque aquilo que é contrabandeado como “zelo pelas coisas de Deus”, em muitas situações é morbosa preocupação com interesses colocados em discussão pelo Espírito. Este nos recorda, isto é, traz de volta à memória do nosso coração, a verdade a respeito de Jesus. A violência verbal e até física contra aqueles/as que reivindicam uma atenção especial para com questões humanas que dizem respeito à vida e à dignidade das pessoas e que, portanto, são assuntos que tem tudo a ver com Deus, pois afinal estamos falando de seus filhos e filhas, é uma postura que contradiz o Espírito do Evangelho. É a esse Espírito que devemos obediência. As tradições e devoções são úteis se nos ajudam a viver a coerência com o Evangelho, mas atrapalham se servem a nos esquecermos dele. O pior perigo para o Evangelho não vem de fora. A maior tentação sempre foi, e sempre será, o mundanismo de uma Igreja que esquece o espírito das bem-aventuranças. Então a cruz, reduzida a um enfeite de vários materiais e usos, torna-se uma cobertura e justificação da iniquidade” (Silvano Fausti). Deus diga bem de todos/as nós.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)