DA MALDADE DE HERODES AO CUIDADO DE JOSÉ!
“Ouve-se um grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora seus filhos e não quer ser consolada, porque eles não existem mais!” (Mt 2,18)
Hoje fazemos a memória do genocídio de crianças com menos de dois anos provocado pela fúria homicida de Herodes, um ser paranoico, obcecado pelo poder, que teme conspirações contra seu reinado e sua própria vida. Narcisista contumaz, não engole a “desobediência civil” dos Magos que justamente recusam de fazer a vontade de tirano porque ordem que gera morte não merece ser obedecida. Seu EGO, acostumado a ser atendido de qualquer jeito, fica gravemente ferido com tamanha afronta, agravada pela notícia de que um ‘pirralho” colocaria em xeque sua tirania. O seu egoísmo o leva a tomar decisões terríveis. Está disposto a todo tipo de crueldade para impedir que o Menino Jesus dê início ao projeto de mundo novo sonhado por Deus. Não se faz escrúpulos em ordenar uma chacina de inocentes que espalha dor e morte numa inteira comunidade.
Aquela tragédia, infelizmente, foi além dos limites de espaço e de tempo para estender-se, sem dar trégua, ao longo da história até os nossos dias. O drama é ainda maior porque, apesar de provocar a nossa comoção e indignação, foi acontecendo impunemente até hoje. Herodes foi se reproduzindo e multiplicando em pessoas, instituições, governos, projetos políticos e escolhas econômicas que se encarregaram de continuar sua perversa lógica de morte infligindo atrozes sofrimentos a milhões de inocentes. O pior de tudo é constatar que quem se ajoelha diante do Menino Jesus no presépio depois o trai e fecha com Herodes. Prefere a (in)segurança das armas do tirano à paz desarmada do Menino. Cultua o “Deus acima de tudo” e negligencia o Emanuel, o “Deus no meio de nós e conosco”. Afirma defender vida, mas depois apoia decisões e ações que espalham morte. Assume a apatia e antipatia de Herodes, em vez de se apaixonar pela empatia, simpatia e cuidado do Deus criança. Acampa na porta de seu palácio, inventa mentiras, fecha os olhos à realidade e faz vigílias para defender as pirraças do tirano, no lugar de abrir os olhos à verdade dos fatos, escancarar o coração à solidariedade, vigiar e lutar contra a dor inocente de milhões de pessoas condenadas a uma vida desumana. Não quero ser pessimista, mas às vezes tenho a impressão de que o grito desesperador de Raquel que chora pelos filhos e filhas que já não existem mais tornou-se a trilha sonora da história tomando o lugar do brado de alegria que sucede às dores do parto. Pelo menos é isso que acontece nas periferias do mundo afora. Todo instante tem uma mãe que aperta ao peito que alimenta a vida o corpo do/a filho/a sem vida como se fosse uma desesperada tentativa de amamentá-lo/a para que volte a viver. A matança de crianças continua sob os nossos olhares que nem sempre reagem como deveriam. Às vezes estão pregados na cruz da impotência, outras vezes virados para o outro lado pela indiferença, outra vezes ainda tampados pela omissão ou definitivamente fechados pela perseguição. Fome, doenças facilmente curáveis, guerras e todo tipo de violência chacinam milhões de crianças pelo mundo afora porque deixamos Herodes à vontade. No Brasil a situação não é muito diferente. Quase 7 mil crianças e adolescentes morrem no Brasil por ano de forma intencional e violenta, entre 2016 e 2020, e cerca de 45 mil são vítimas de violência sexual anualmente – na faixa etária de 0 a 19 anos. A cada dois dias, mais de uma criança de até 9 anos é morta no país. A cada 07 minutos uma mãe brasileira, prevalentemente pobre, negra e moradora da periferia, lança seu grito desolador ao receber a notícia do assassinato de seu filho ou de sua filha com idade entre 07 e 19 anos. Conforme dados do último Atlas da Violência, das 623.439 pessoas que foram assassinadas no Brasil entre 2009 e 2019, 333.330, eram adolescentes e jovens de 15 a 19 anos. Trata-se de inteiras gerações perdidas, um dramático genocídio da juventude pobre, negra e periférica.
É dramático constatar que, depois uma longa e heroica batalha protagonizada sobretudo pela Pastoral da Criança para reduzir o índice de mortalidade infantil que tinha alcançado níveis vergonhosos, agora tenhamos que encarar o Índice de Mortalidade Violenta de crianças e adolescentes. Salvamos as crianças de 0 a 6 anos para ser mortas assassinadas depois com crueldade.
Chega de hipocrisia. Herodes está à solta, agindo impunemente. Olhar para o presépio é também reconhecer, denunciar e enfrentar essa história de desprezo à vida que se encarna em milícias, quadrilhas, facções, estruturas políticas, econômicas e sociais que tomam decisões e executam projetos desumanizadores, apoiados direta ou indiretamente por instituições religiosas que deveriam estar a serviço da vida. Sem essa lucidez e enfrentamento, o Natal tornar-se-ia um refúgio imaginário onde esconder-se perante os desafios e injustiças do nosso tempo. O Evangelista Mateus quis colocar de propósito estas crianças inocentes no presépio, bem perto do Menino Jesus, para que ficassem bem sob o nosso olhar na hora de contemplar o presépio, mas nós fazemos de tudo para escondê-las ou negá-las. “Contemplar o presépio é também contemplar este pranto, é também aprender a escutar o que acontece ao redor e ter um coração sensível e aberto à dor do próximo, especialmente quando se trata de crianças, e é também ser capaz de reconhecer que ainda hoje está sendo escrito este triste capítulo da história. Contemplar o presépio, isolando-o da vida que o circunda, seria fazer do Natal uma linda fábula que despertaria em nós bons sentimentos, mas privar-nos-ia da força criadora da Boa Nova que o Verbo Encarnado nos quer dar. E a tentação existe… Pode-se viver a alegria cristã, voltando as costas a estas realidades? Pode-se realizar a alegria cristã, ignorando o gemido do irmão, das crianças?” (papa Francisco, 2016). Claro que não! O Natal é tempo de opções em favor da vida. O Menino Jesus nos desafia a olhar todas as pessoas, sobretudo as crianças, os adolescentes e os jovens com o olhar do cuidado de maneira que possam nascer, crescer e viver com dignidade e amor à vida. Não perguntemos “onde Deus está”, como sempre fazemos diante da dor inocente. A questão pertinente é “onde nós estamos?”. É o mesmo questionamento que Deus faz a Adão e Eva. A maldade de Herodes não é criação de Deus, mas é fruto das nossas escolhas equivocadas. Onde estamos com a nossa cabeça e o nosso coração quando nos tornamos “Herodes” e/ou deixamos Herodes à solta? Na trama da chacina de Herodes, tem uma figura silenciosa que reponde por nós todos. É José. É a imagem do cuidado. Atento a tudo o que está acontecendo e sempre em sintonia com Deus, percebe o risco e o previne. É o homem do cuidado. E graças a ele que o Menino sobrevive. Assim deveríamos agir todos nós para garantir vida a todas as crianças e adolescentes.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)