Deixemos que Jesus nos coloque em crise (Jo 6,67)
O discurso sobre o Pão de Vida Eterna que Jesus faz na sinagoga de Cafarnaum e que a Igreja nos propôs neste Tempo de Páscoa é difícil de digerir (Jo 6,22-71)). Revela um Deus diferente daquele ao qual os discípulos estão acostumados. Ele diz e mostra coisas que não se encaixam nos esquemas tradicionais, não correspondem aos seus interesses e não se enquadram em suas expectativas. Eles não confiam em Jesus porque não o querem assim como ele está se revelando. Estão atrás d’Ele por causa dos prodígios que realiza. Desejam ver nele o Messias forte e poderoso em batalha para fazer de Israel uma grande nação. Após a multiplicação dos pães e peixes, aguardam o “comício da vitória” para apresentar seu projeto de poder. Em vez disso, Jesus os surpreende com um programa de vida que enche seus corações endurecidos de decepção. Um Deus como Jesus o revela, que assume a condição de um servo, não serve a nada. Preferem um deus que faz maravilhas, que dá pão e circo a todos, resolve os problemas com toque de mágica e, acima de tudo, faz tudo sozinho. A proposta de Jesus é revolucionária e chocante: trata-se de doar em vez de receber; doar a vida no lugar de segurá-la para si mesmo; compartilhar em vez de acumular; promover a paz ao contrário da violência, perdoar no lugar de procurar vingança, servir em vez de buscar cargos de prestígio. Os “discípulos de conveniência” não têm interesse nisso. Preferem ir embora e voltar à vidinha de sempre. Eis mais um exemplo de saudade das cebolas do Egito. “A tentação de quem caminha com Deus é ceder à saudade da vida pregressa. Uma vida feita para satisfazer a barriga e não ter muitos problemas, onde se voa baixo e se investe somente na construção do “próprio reino” que tem que ser defendido a qualquer custa. Uma vida que para o Evangelho não é vida, mas é um retorno às próprias escravidões bem disfarçadas. Desses jeitos de viver “em baixa altitude” tem muitos por aí, inclusive em nossas comunidades! Ir com Jesus, por outro lado, significa estar disposto a voar alto, navegar para águas mais profundas, arriscando a vida, envolvendo-se plenamente em Seu destino” (Pe. Giacomo Falco Brini).
Os discípulos preferem voltar atrás ao invés de seguir em frente. Eles abandonam o Mestre da Verdade para ir em busca de mestres que os lisonjeiam com palavras cativantes, que dizem o que querem ouvir e que confirmam sua maneira de pensar. Eles não estão dispostos a se comprometerem com o Evangelho.
Acredito que este seja precisamente o objetivo de Jesus na sinagoga de Cafarnaum: provocar a crise para deixar cair as máscaras. Jesus gosta de abrir o jogo. O mestre não busca consentimento a qualquer preço. Não retrata a Palavra para garantir os aplausos da multidão, nem suaviza o tom de seu discurso para tentar conquistar a simpatia do povo. Ele não aceita chegar a um acordo ou adoçar o Evangelho para torná-lo apetitoso para o paladar daqueles que querem uma fé sem risco e sem esforço. Muitos viram as costas, mas Ele não se curva. O discurso sobre o pão é a porta estreita pela qual deve passar quem quiser segui-Lo, conhecê-lo e acolhê-lo assim como Ele é. Uma fé que brota e cresce por atração inevitavelmente leva a esta crise. Cedo ou tarde precisa decidir de que lado ficar. Bem-aventurado/a é aquele/a que um dia tem a graça de enfrentar a tempestade que traz à tona a verdade de si mesmo/a e coloca à prova a autenticidade da fé, para verificar se ele segue Jesus por uma escolha de amor ou por adesão passiva à uma tradição, por um medo infantil do castigo eterno ou por algum interesse. Aqueles que nunca tiveram crises de fé nunca se confrontaram efetivamente com Jesus de Nazaré assim como se revela nos Evangelhos.
O fracasso com os discípulos estimula Jesus a concentrar sua atenção na comunidade dos Apóstolos. A nova fase começa com uma pergunta à queima-roupa, daquelas que exigem uma firme decisão: “Vós também quereis ir embora?”. É uma daquelas interpelações na Bíblia que fazem balançar nossas convicções e nos forçam a refletir. A Palavra não deixa ninguém na confortável posição de neutralidade. Em nome de todos, Pedro responde: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna.” Mais do que um ato de fé, é uma declaração de amor. A Palavra de Jesus é pão duro até para seus dentes. Pedro custa a assimilá-la e digeri-la, mas, desde o dia que decidiu seguir Jesus, sente que permanecer com Ele é o melhor negócio de sua vida. Ao lado dele experimenta aquela plenitude da vida que ninguém lhe garantira até aquele momento. Chegar a esse ponto não é fácil. Pedro propõe seu método: “Nós cremos firmemente e reconhecemos que Tu és o Santo de Deus!”. O primeiro passo é crer, depois vem o conhecer. É exatamente o que acontece na experiência do amor. Primeiro acontece o enamoramento. Só depois começa a parte do conhecimento recíproco que dura a vida toda. Se o amor for verdadeiro, os amantes se amam com tudo e apesar de tudo o que chegam a conhecer reciprocamente. Esta é a resposta de Pedro construída dia após dia, através de altos e baixos, manifestações de afeto e traições. Agora cabe a cada um/a de nós responder. Ninguém pode fazer isso por nós. Não é fácil crer. A fé em Jesus não é um assunto simples. É um caminho cheio de desafios, feito para quem está disposto/a a passar por novidades, surpresas, reviravoltas, riscos e perseguições. É por isso que Jesus diz que ninguém pode vir a Ele a não ser que lhe seja concedido pelo Pai. A fé não é uma conquista, é um dom de Deus. Só é possível no contexto da experiência do amor do Pai. É Ele quem coloca esse desejo em nossos corações. Antes de qualquer iniciativa de nossa parte, o primeiro passo é do Pai que seduz nosso coração e desperta em nós o desejo de procurá-lo. Na prática, buscamos aquele que nos procura. É o fascínio do amor do Pai que nos impulsiona para o Filho. A Jesus se chega só por atração, não por tradição nem por imposição. Podemos conhecê-lo de verdade somente através da livre adesão ao Evangelho e não pelo endoutrinamento ou por “decreto”. Tornamo-nos seus discípulos somente se for por amor e não por interesse. Chega de buscar Deus em sonhos e imagens de grandeza e poder. Só podemos reconhecê-lo na humanidade de Jesus e, consequentemente, na dos irmãos e irmãs que encontramos no caminho da vida.
(Padre Xavier Paolillo, missionário comboniano)