Deus e o protagonismo infanto-juvenil
Conta a primeira leitura de hoje que Moisés nasceu dum casal da casa de Levi, quando o povo de Israel viva feito escravo na terra do Egito (Ex 2.1-15). Foi abandonado num cesto nas águas do rio Nilo. Os pais não tinham alternativas. Uma lei imposta pelo Faraó lhe negava o direito de viver. O decreto mandava exterminar os filhos machos dos hebreus. Tratava-se de uma medida drástica para o controle de natalidade. O império não dava mais conta do aumento assustador do número dos filhos de Israel. Estes cresciam em ritmo vertiginoso e estavam se tornando um problema para a classe dominadora. Políticas de controle de natalidade associadas a campanhas de extermínio são os métodos utilizados desde sempre para acabar com os mais, sobretudo quando constituem uma “ameaça” aos interesses dos poderosos.
No entanto a vida se impôs. Parteiras tementes a Deus descumpriram a ordem funesta. Foi por isso que Moisés nasceu e permaneceu vivo. Um a zero no placar da luta entre o direito à vida e a cultura da morte. É bom saber que, apesar do poder do faraó de oprimir com suas leis, existem pessoas, como estas mulheres, que mantêm intacta sua vocação e sua sensibilidade pela vida. Estas mulheres são exemplo vivo de desobediência civil, de resistência contra toda e qualquer ordem, lei, e prática que se opõem ao projeto de Deus que é a garantia da vida com dignidade.
Seus pais o mantiveram escondido por três meses. Depois foram obrigados a se desfazerem dele, abandonando-o nas águas do rio Nilo. Achado pela filha do Faraó, Moisés foi adotado por ela. Criado no Palácio, tinha tudo para se tornar um homem do sistema. Mas o sangue falou mais alto. Apesar da criação no meio da classe alta, Moisés não perdeu a identidade de filho de Israel e, sobretudo, a compaixão pelo seu povo sofrido. O sofrimento de sua gente mexia com ele. Um dia presenciou um judeu sendo espancado por um soldado do regime. Ficou com pena. Partiu para cima do agressor e o matou. Cometeu um crime gravíssimo que, pela lei do regime, devia ser punido com a pena de morte. Passou a ser visto como um infrator, um assassino, um perigoso criminoso. Sua solidariedade com o povo sofrido o tornou hostil ao regime. Perseguido, conseguiu escapar. Tornou-se um fugitivo, um procurado pela justiça ou, dependendo do ponto de vista, um refugiado político. Escondeu-se na terra de Madiã e se abrigou na casa de um sacerdote onde trabalhou como pastor de ovelhas. Acabou casando-se com a filha dele. Mas Deus o achou e o chamou. Na sarça que ardia e não se consumia Deus se manifestou. Incomodado com o sofrimento de seu povo oprimido, Deus lhe entregou uma missão: libertar os filhos de Israel da escravidão. Tentou se safar. Apresentou uma lista de desculpas para não assumir. Mas não conseguiu resistir ao chamado. Foi assim que aquele menino tímido e gago; revoltado, mas ao mesmo tempo, sensível ao sofrimento dos outros; rejeitado antes de nascer por um sistema hostil à vida e abandonado para não ser morto; enquadrado como “jovem autor de ato infracional’ por ter matado uma pessoa virou um dos maiores líderes da humanidade porque Deus confiou nele e ele confiou em Deus.
Essa não foi a única vez que Deus fez isso durante a História da Salvação. Foram inúmeros os casos de crianças, adolescentes e jovens chamados por Ele em vista de uma grande Missão. Foi assim também que aconteceu com Ismael, o filho “bastardo” de Abraão com a escrava Agar (Gn 21,1-20). Esta foi mandada embora de casa pelo Patriarca. Sem rumo, fugiu em direção ao deserto com um punhado de comida e uma sobra de água. Quando acabou a água do cantil, Agar colocou a criança debaixo de um arbusto e foi sentar-se na frente, a distância de um tiro de arco. Desesperada, elevava sua súplica comovente: “Não quero ver a criança morrer!”. Deus não agüentou aquele choro. Mandou um anjo que lhe mostrou um poço donde ela tirou a água para seu filho beber. Foi assim que Deus salvou Ismael e aquele menino abandonado, filho de uma escrava mãe solteira, obrigado a viver sem o apoio do pai, se tornou um valoroso guerreiro, líder de um povo forte e guerreiro.
Mesma sorte se deu com o pequeno Davi, o “menor” de todos os filhos de Jessé. Foi ele que foi escolhido por Deus para ser o rei de Israel. Os mais fortes foram descartados. Sobrou para o mais frágil (1 Samuel 16). A aparência engana. Deus não age segundo os critérios e os preconceitos humanos. Ele olha com os olhos do coração. Quem enxerga dessa forma vai se dar conta que, atrás da pequenez, escondem-se grandes potencialidades. A aparente fragilidade de Davi foi capaz de derrotar a força bruta do gigante Golias. É um bom parâmetro. Nada de descartar criança porque não tem tamanho.
Enfim, é bom lembrar que o próprio Deus, quando decidiu mergulhar na história humana, se fez criança. Nasceu de uma adolescente, mãe solteira na periferia de Belém, pois não havia lugar para ele. Foi entregue aos cuidados de outro adolescente, chamado José. Logo após o nascimento teve que fugir porque os soldados de Herodes queriam matá-lo. Se vivesse hoje teria sido encaminhado para o PPCAM, Programa de Proteção para Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. Conheceu na própria pele uma infância difícil e a experiência da rejeição, mas venceu as dificuldades e cumpriu sua missão de salvar a humanidade.
Como é bom contemplar aquilo que Deus é capaz de fazer com a garotada que não conta nada aos olhos de muitos. Enche-nos de esperança e nos dá combustível para alimentar o trabalho de promoção do protagonismo infanto-juvenil. Pouco importam os critérios humanos. Estes não pesam nada na escolha de Deus. Ele, na maioria das vezes, escolhe justamente quem é desprezível aos olhos dos seres humanos para confiar-lhe uma grande missão. A mesma coisa pode fazer ainda hoje. Portanto nenhuma menina ou menino deve se considerar inútil ou incapaz. Deus confia. Muitas vezes, as crianças, os/as adolescentes e os/as jovens são taxados/a pelos adultos como bagunceiros/as, preguiçosos/as, instáveis, inconsequentes e irresponsáveis. Embora se perceba a importância deles/as em seu papel ativo dentro da estrutura social, ainda não foram reconhecidos/as plenamente enquanto sujeitos de direitos, continuando sendo excluídos/as das formas ativas de participação religiosa, social e política. O desprezo aumenta ainda mais quando são pobres, negros/as e moradores/as da periferia. Aí, na maioria dos casos, as portas se fecham e sobe a espessa cortina da marginalização. Se é já difícil acreditar no/a adolescente e jovem, pior ainda é confiar em “trombadinha”. Muitos, “órfãos” das políticas públicas, acabam nas garras da criminalidade. Seu destino é implacável: ou a cadeia ou o cemitério.
Mas Deus não vê a criança e o/a adolescente desse jeito. Gosta de envolvê-los/as em sua empreitada e de trabalhar com eles/as. Portanto, nada de inventar modas. O protagonismo infanto-juvenil não é invenção nossa. Deus faz isso desde sempre. E é isso que a Pastoral do Menor, a Pastoral da Criança, a Pastoral da Juventude, a Pastoral Carcerária, a Pastoral de Rua e da Terra e outras e Pastorais Sociais, movimentos, associações pretendem continuar. Inspirando-se na prática de Deus, valorizam os/as pequenos/as e promovem seu protagonismo, sabendo que, à sua maneira, podem e devem, desde já, contribuir para com o bem da comunidade. As crianças e aos adolescentes não são seres humanos em miniatura, mas sujeitos de direitos. Não são os cidadãos do futuro, são cidadãos desde já, com direito a ter direitos.
Os exemplos do jovem Moisés e das outras figuras bíblicas de crianças, adolescentes e jovens que descrevemos nesse texto sirvam de estímulo para que as jovens gerações assumam o compromisso de liderar suas comunidades no caminho que leva o povo à conquista da dignidade e da plenitude da vida. E a prática de Deus sirva de exemplo para nossas comunidades para que abram suas portas e seus corações à acolhida das crianças, dos/as adolescentes e dos/as jovens das comunidades periféricas e apostem em suas potencialidades.
(Padre Xavier Paolillo, Missionário Comboniano)