Em Busca da Nossa Verdadeira Identidade
Nicodemos é um homem maduro e poderoso. É membro do Sinédrio onde exerce grande influência. É um fariseu cheio de zelo que conhece a Lei e a aplica até o último detalhe, porque, desde criança, aprendeu que a salvação só acontece através do cumprimento rigoroso da Torá. Apesar disso, vive atormentado por dúvidas e não se sente plenamente satisfeito. O fato de sair à procura de Jesus significa que não consegue dormir porque ainda não encontrou o sentido da vida. O encontro de Jesus com Nicodemos acontece de noite, porque o ser humano que é escravo do legalismo permanece na noite, não veio à luz, não nasceu ainda. É escravo de uma religiosidade arcaica, infantil que não alcançou sua maturidade. É adepto da religião de quem faz por obrigação e não por amor. Pode até ser um bom empregado que faz direitinho seu dever de casa, mas ainda não se reconhece e não se comporta como filho/a. Deus não quer escravos/as, mas filhos/as. Aqui está a novidade que Jesus anuncia para iluminar a noite de Nicodemos.
A abordagem é respeitosa. “Rabi, sabemos que és um Mestre vindo de Deus. Ninguém pode fazer esses milagres que fazes, se Deus não estiver com ele”. Nicodemos trata Jesus com deferência. Dá-lhe o título de Mestre. Esse reconhecimento não é exclusividade dele. Sabe que essa é a opinião de muitos. Por isso fala ao plural. Não está falando em seu nome. Nicodemos é uma figura corporativa. Representa um grupo de pessoas que, mesmo sabendo que Jesus é um Mestre digno de respeito, não o reconhecem como Messias.
Jesus não está nem aí com os elogios de Nicodemos. Não liga com os títulos que Nicodemos lhe atribui. Vai direto ao ponto com uma fórmula pronunciada com autoridade. Usa uma expressão que é só dele para ir direto ao assunto: é tempo perdido continuar com essa conversa. Precisa renascer: “Amém, amém, eu te digo: se alguém não nasce do novo, não pode ver o Reino de Deus”. Nicodemos fica perdido: “Como é que alguém pode nascer de novo se já é velho? Poderá entrar outra vez no ventre de sua mãe? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?”. Fisiologicamente não é possível. Ninguém pode ser parido de novo. Isso independe da idade. Nem velho nem novo, nem adulto nem criança podem nascer de novo. Só se nasce uma vez. Mas Jesus insiste: “se não for gerado do alto, da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus”. Eis a questão central: o problema não é mais o simples “nascer”, mas o “ser gerado do alto, da água e do Espírito”. O verbo, no texto original, é o mesmo. Para dizer “nascer” ou “ser gerado” usa-se a mesma palavra. Aqui eu prefiro a tradução “ser gerado” porque estabelece uma relação forte com quem faz nascer. Ninguém nasce sozinho e do nada. Todo mundo é filho/a de alguém. Nasce quem um dia foi gerado/a. O ponto crucial é a identificação e o reconhecimento da paternidade e da maternidade. É saber quem é o pai e quem é a mãe, porque é justamente o amor do pai e da mãe que faz nascer e viver de verdade. O problema central é descobrir de onde vem a nossa vida, qual é nossa origem, onde estão enraizadas nossas raízes. Segundo a tradição judaica a vida é uma conquista do ser humano, o prêmio do cumprimento das obrigações legais. O ser humano tem vida se cumpre o que determinam os mandamentos. A vida, portanto, é o resultado do esforço do ser humano, uma conquista dele.
Aqui Jesus diz outra coisa: a vida não é objeto de conquista e nem tampouco fruto de rapina. A vida é doada. O verbo ao passivo nos põe numa postura receptiva. Existo porque eu sou filho/a. Sou, porque sou amado/a. A vida é um presente de Deus. Nós somos o fruto do amor incrível de Deus. Ele é o Pai e a Mãe. Nós somos todos radicalmente filhos/as amados/as. Nós existimos porque Ele nos ama. À origem do nosso existir não há um destino predeterminado, um caso, uma banalidade, não há também um desígnio sádico da natureza que destrói tudo aquilo que produz, mas um amor pessoal de Pai/Mãe para com o/a filho/a.
Nascer de novo, portanto, é reconhecer que nascemos do alto, que somos gerados/as por Deus, que somos seus filhos/as. Só quem reconhece a Deus como Pai/Mãe aprende a aceitar a si mesmo como filho/a e a acolher os/as outros/as como irmãos/ãs. A crise da fraternidade/sororidade é o resultado da negação da paternidade/maternidade de Deus. Ao revelar isso, Jesus veio nos curar do pecado original que é como o pecado de Edipo que nos leva a matar nosso próprio Pai, a eliminá-lo de nossa vida, a ser autossuficientes, pais de nós mesmos/as. É o pecado do filho pródigo que acha que pode bastar a si mesmo e prescindir do Pai. É o risco sempre presente na vida humana de tomar as distâncias de Deus, de virar-lhe as costas, de achar que a afirmação do ser humano passa pela negação de Deus. As consequências dessa escolha são desastrosas. A parábola do filho pródigo é prova disso. O filho, que na casa do pai tinha tudo, após renegar suas origens, acaba comendo a comida dos porcos. Perde totalmente sua dignidade. Ao abandonar a casa do Pai e ao desistir de sua condição de filho, rompe também as relações de irmandade. A mesma coisa acontece com o filho mais velho, porque, mesmo vivendo em casa o tempo todo, não se sente em família. Enxerga o Pai como patrão a quem obedece servilmente. Tem crise de identidade. Reconhece-se como empregado e não reconhece o outro como irmão. Longe do Pai o ser humano se desumaniza. Renega também o/a irmão/ã que, como nos ensina a história de Caim e Abel, passa a ser encarado/a como rival, um adversário que precisa eliminar. É o desprezo pelo Pai que faz a violência tomar conta de nossas vidas. É o desprezo para com Deus que nos leva a desprezar a vida dos/as outros/as.
A resposta de Jesus a Nicodemos nos mostra qual é a fonte da nossa vida: a vida ou é dom de Deus ou não é vida. A nossa origem está no Pai, no amor, ao mesmo tempo, paterno e materno de Deus. A nossa identidade é ser filhos e filhas d’Ele. Diante dessa revelação nossa vida consiste em dizer sim à nossa condição de filho/a. Inclusive é dessa condição que advêm o reconhecimento da nossa dignidade e da dignidade do/a outro/a.
Essa é a Boa Nova que Jesus nos trouxe. Até que nós não aceitarmos nossa condição de filhos/as, permaneceremos na noite. Permanecer na noite significa não nascer, estar imerso nas trevas. Não ter saído ainda do seio materno. Ser escravo da carne. Significa não ter vida, não vir à luz verdadeira. Nesse sentido, a fé cristã não consiste na adesão a uma doutrina, a uma teologia, menos ainda a uma moral. A fé cristã é acreditar no amor incrível que Deus tem para o ser humano. É crer na paixão de Deus por nós. A fé é adesão filial ao Pai/Mãe que nos ama ao ponto de dar a vida por nós. É esta a iluminação que nos traz à luz da liberdade e à plenitude da vida.
(Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)