ESCUTAR COM O CORAÇÃO É AGIR COM CARIDADE E COM ESPERANÇA
Vós tendes o coração endurecido? (Mc 8,14-21)
A pergunta de Jesus é dirigida aos discípulos, portanto também a nós que seguimos Seus passos e buscamos ser e viver como Ele. Ao centro da questão Jesus põe o coração, um tema muito debatido em toda a Sagrada Escritura. Quando a Palavra de Deus fala do coração, é claro que não está falando simplesmente do órgão vital que bate em nosso peito e que é responsável por distribuir sangue para todo o nosso corpo. Também não se refere apenas à vida afetiva, às emoções, aos sentimentos que têm seu lugar no coração de acordo com a crença comum.
Como Enzo Bianchi explica, “o coração designa toda a pessoa na unidade de sua consciência, sua inteligência, sua liberdade; o coração, além de ser a esfera de afetos e sentimentos, é a sede da memória, pensamentos, decisões, operações, escolhas e projetos humanos. Resumindo, tudo é decidido com o coração. Representa a vida humana em sua totalidade”. [Acesse áudio aqui]
Centralidade do coração
Nestes tempos de ditatura tecnocrática, é importante redescobrir a centralidade do coração que não se reduz ao sentimentalismo e não despreza a razão lógica, mas aponta para uma verdadeira síntese entre racionalidade e amor, uma parceria que rompemos graças a um divórcio perigoso entre essas duas dimensões igualmente essenciais, mas exitosas só se aprendem a caminhar conjuntamente.
Por ser o centro da pessoa, o coração é o lugar favorito de Deus. É ao coração que Ele bate para nos pedir para entrar e Ele fica feliz quando abrimos as portas do nosso coração inteiramente para Ele. Deus quer nosso coração todo para Ele: “Você amará o Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força” (Dt 6:5). Deseja exclusividade sobre nossos corações, mas isso não nos dá o direito de acreditar que temos exclusividade sobre Deus.
O amor de Deus
A bela expressão de fé de Tomás que muitas vezes repetimos: “Meu Senhor e meu Deus” não indica um amor possessivo, mas a adesão ao amor oblativo de Deus. Significa que eu sou de Deus e não que Deus me pertence como propriedade privada que posso usar conforme minhas pirraças. O coração nunca pode ser uma célula que aprisiona o amor de Deus, mas um poço cavado e alimentado por Deus do qual todos podem e devem atingir Seu amor. O amor de Deus não tem os limites do nosso coração, nem mesmo os limites intransponíveis da nossa instituição, do nosso grupo, da nossa comunidade eclesial… Extravasa qualquer limite, inclusive do universo e, sobretudo, dos preconceitos. O coração de Deus está onde a pessoa está. O coração habitado por Deus não é cercado por muros e arame farpado, mas é um coração “pontífice”, ou seja, lança pontes por todos os lados e em todas as direções. Se lhe dermos a exclusividade de nossa vida, nosso coração se torna inclusivo. Se for tudo para Ele, também será tudo para todos/as, disponíveis para todos/as, sem distinção e discriminação.
O coração é o lugar onde Deus fala, consola, encoraja, perdoa, educa e corrige
Esta é a plataforma onde a comunicação entre Deus e o ser humano é possível porque é sempre uma comunicação de amor. Claro, ele usa de tudo para comunicar-se conosco. Ele fala através da natureza, da Palavra, dos sacramentos, das pessoas, dos pobres…, mas sempre para falar de coração a coração. Antoine de Saint-Exupéry acerta quando escreve “Você só pode ver bem com o coração”. A Bíblia apresenta essa mesma verdade aplicando-a aos “ouvidos do coração”: toda a obra, o sentimento, o pensamento do ser humano nasce do coração, por isso é o coração que a primeira dimensão a ser alcançada pela Palavra de Deus.
Escuta Israel
O povo de Israel entendera isso. O fulcro de sua oração, o mandamento dos mandamentos, era “Shema’ Jisra’l”, “Ouça, Israel!” (Dt 6,4). A profissão de fé do povo de Israel não se limitava a uma lista de dogmas recitada às pressas como costumamos fazer na Missa do domingo, mas era medida pela disponibilidade à escuta. “Ouvir é a principal operação do homem diante de Deus, tanto que se pode dizer que se, do lado de Deus, ‘no início estava a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus’ (Jn 1:1), para o homem ‘no início está a escuta da Palavra’” (Enzo Bianchi). Quando Deus fala e é ouvido, coisas bonitas e extraordinárias acontecem, mas quando Ele não é escutado acontece o desastre.
A tragédia da humanidade começa quando, em vez de ouvir Deus, o coração ouve a “serpente”. A fé é medida pelo nível e qualidade da escuta com o coração. Paulo poderá dizer nesse sentido que “a fé nasce da escuta” (fides ex auditu: Rom 10,17), mas – repito – “de uma escuta que tem sua plenitude apenas no coração” (Enzo Bianchi). Sem coração, não há escuta verdadeira. Só ouvimos sons, muitas vezes irritantes, especialmente quando as palavras nos questionam, quando não se prestam aos nossos interesses. Viramos surdos ou atribuímos aos outros o que ouvimos: “o que está sendo dito não é para mim, se aplica aos outros”. “A verdadeira escuta é dada quando a Palavra de Deus desce para as profundezas do coração e aqui é bem-vinda, meditada, lembrada, pensada, conectada uma com a outra, interpretada e guardada com perseverança, de modo que, graças ao seu dinamismo inspirador, ela se torna ação, exercício de misericórdia. Sem essa qualidade de vida interior, ouvir é vaidoso, ilusório; na verdade, é mortal, porque quando não há uma escuta verdadeira, então o caminho é aberto para a terrível experiência que os profetas chamam de *sklerokardía*. Ps 94 [95],8 LXX)” (Enzo Bianchi). É a síndrome do coração duro como pedra.
Jesus também falou do risco de esclerocardìa
Ele diagnosticou isso nos fariseus, em homens religiosos, nas autoridades de seu tempo, mas também nos discípulos. Em alguns casos, ele a citou abertamente, em muitas outras situações ele a subentendeu à origem de atitudes como hipocrisia, formalismo, ritualismo, descrença, indiferença, egoísmo, preconceito, exclusão, apego mórbido às riquezas, carreirismo, luta pelos primeiros lugares e falta de misericórdia. Em suma, a dureza do coração é uma doença generalizada, mesmo entre aqueles que estão mais próximos de Jesus.
Não cabe a mim julgar ninguém, mas quanta dureza de coração há por trás de certas posições fanáticas, moralistas e preconceituosas que não apenas lutam contra o pecado, mas gostam de destruir as pessoas. A cura para a dureza do coração é a misericórdia. A melhor terapia é fazer a anamnese, ou seja, o exercício espiritual de re-cor-dar, no sentido de trazer de volta ao coração (cor em latim), todas as vezes que Deus tem sido bom e misericordioso conosco. Como este exercício é bom para nós. Restaura a serenidade ao coração, mas acima de tudo o amolece quando se confronta com quem comete erros
Como fazer para ouvir a Palavra com o coração?
A resposta vem da explicação que o próprio Jesus dá à ‘parábola do semeador’ (Mc 4,13-20 e par.). É preciso saber interiorizar a Palavra, lutando contra a distração, caso contrário ela, como a semente semeada ao longo do caminho, permanece ineficaz e não produz o fruto da fé; é necessário dar tempo para ouvir, perseverar nela, lutando contra a inconstância, caso contrário a Palavra, como a semente semeada em solo pedregoso, não produz o fruto da profundidade, firmeza e perseverança da fé pessoal; finalmente precisa lutar contra as preocupações, contra as outras “palavras” e as sedutoras “mensagens” da mundanidade, caso contrário a Palavra, como a semente semeada entre os espinhos, é sufocada, permanece infrutífera e não produz uma fé madura que motiva a caridade e alimenta esperança (Enzo Bianchi).
Que o Coração de Jesus abra nossos corações para ouvir Sua Palavra de Amor e colocá-la em prática no exercício da misericórdia, na construção da paz e implantação da justiça.
Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano
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