Eu vos declaro marido e mulher
O trecho escolhido para a nossa reflexão pode parecer um pouco controverso nos tempos atuais, pois retrata uma realidade cultural da época paulina. O texto citado acima abre uma parte da carta aos efésios destinada a orientar a comunidade de como viver suas relações familiares: Mulher e marido (Ef 5,22-33), filhos e pais (Ef 6,1-4), escravos e senhores (Ef 6,5-9). Podemos afirmar que estamos diante de uma espécie de código familiar, que pretende orientar as pessoas e não servir como um código jurídico:
21Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo. 22Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. 23De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabeça da Igreja. 24E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos. 25Maridos, amem suas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; 26assim, ele a purificou com o banho de água e a santificou pela Palavra, 27para apresentar a si mesmo uma Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou qualquer outro defeito, mas santa e imaculada. 28Portanto, os maridos devem amar suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher, está amando a si mesmo. 29Ninguém odeia a sua própria carne; pelo contrário, a nutre e dela cuida, como Cristo faz com a igreja, 30porque somos membros do corpo dele. 31Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. 32Esse mistério é grande: eu me refiro a Cristo e à Igreja. 33Portanto, cada um de vocês ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido. (Ef 5,21-33)
Se fazemos uma leitura superficial deste texto podemos pensar que a relação matrimonial é desfavorável para as mulheres que devem ser “submissas” aos seus maridos. Esse tipo de leitura pode nos mostrar a desigualdade entre homens e mulheres que imperava na época em que foi escrita essa carta. Porém a mensagem que podemos acolher dessa carta segue por outro caminho, totalmente contrário a esse da diminuição feminina diante do homem.
A chave de leitura para poder compreender bem o que se quer transmitir com esse código familiar é apresentado logo ao início: “Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo.” (Ef 5,21). Lendo todo o texto tendo como parâmetro principal esse versículo a sua compreensão muda completamente, pois todos devem servir uns aos outros. O serviço deve ser característica principal dos seguidores de Cristo, porque foi Ele próprio que nos ensinou o serviço na ultima ceia, quando levantando-se da mesa pegou uma bacia e uma toalha e lavou os pés dos discípulos. A vida de um cristão deve ser serviço.
Após a introdução com o versículo 21, o nosso trecho pode ser divido em duas partes, a primeira destinada às mulheres (22-24) e a segunda destinada aos homens (25-33). Vejamos o que podemos interpretar essas duas partes e quais são as atribuições feitas às mulheres e aos homens.
As mulheres se pedem que sejam submissas aos maridos, como a Igreja deve ser a Cristo. Por duas vezes se diz que elas devem ser submissas. É importante salientar que na cultura antiga a mulher não possuía todos os direitos que possui nos dias atuais e muito dessa cultura é refletida nos textos da Bíblia. Ler essas linhas com a consciência que temos hoje nos causa estranheza, pois vivemos em uma sociedade de paridade entre os gêneros. Então como podemos compreender o que diz a carta aos efésios?
Devemos nos atentar primeiro à palavra usada para exortar as mulheres: “submissas”, que é diferente da utilizada adiante quando o autor se refere aos filhos e aos escravos: “obedeçam”. Essa diferença nos diz claramente que ser submisso não é obedecer infantil e cegamente, mas sim nos revela que dentro de uma familia existem funções que devem ser exercidas coresponsavelmente por certos ‘personagens’. Um filho não pode fazer o papel de pai e os pais não podem exigir que seus filhos atuem como seus pais. Essas funções devem ser exercidas de modo livre, consciente e responsável para que a familia possa viver.
A paridade entre mulheres e homens aparece também nas cartas paulinas, pois em Cristo somos todos novas criaturas e não existe mais divisões, nem gregos, nem hebreus, nem homens, nem mulheres, todos somos um por Cristo. Essa submissão podemos compreender também através do primeiro versículo desse trecho, ou seja, uma vida a serviço do próximo.
Na segunda parte vemos a exortação aos maridos. O que está escrito aqui se contrapõe em muito com a cultura dominante da época, pois se pede ao marido de amar a sua esposa como Cristo amou a Igreja: uma vez para sempre. Quando o autor fala de amor utiliza a palavra agapân, normalmente essa palavra se referia ao amor de Cristo ou de Deus, que se caracteriza por um amor gratuito. Esse tipo de amor é marcado pela autodoação ao outro mesmo que seja danosa para si mesmo, pois é motivada pelo bem a ser feito ao outro. O amor que nos apresenta a carta aos efésios podemos reconhecer no amor de Cristo pela igreja, pois ele foi capaz de se doar na cruz para a salvação de todos. Amar dessa maneira é uma exigência a todos os cristãos, pois se seguimos a Cristo devemos ter os mesmos sentimentos que o mestre.
Uma curiosidade que podemos apresentar sobre esse trecho é a sua possível atualização do que está descrito no Antigo Testamento. Alguns profetas apresentam o povo de Israel como a esposa de YHWH. Também no Apocalipse podemos ver essa imagem. A novidade apresentada na carta aos efésios é que o noivo não é YHWH, mas Cristo e a noiva não é o povo de Israel, mas todos os cristãos: hebreus e pagãos. Com esse olhar podemos notar a abertura do anuncio da Boa Nova aos pagãos, que podem fazer parte do povo de Deus.
Outra ligação com o Antigo Testamento é a citação que faz o autor de uma parte do Genesis, para fortalecer a sua afirmação que marido e mulher são uma só carne. Com isso a responsabilidade do marido se torna crucial, pois ele não pode menosprezar de nenhuma maneira uma parte do seu mesmo corpo.
O amor conjugal é dom de Deus, é vocação e mistério de amor. Ser submisso e ser responsável pelo outro não pode ser atitudes somente de uma das partes do casal, mas devem fazer parte da vida matrimonial dos dois. Os dois devem crescer juntos como pessoas e como familia, para poder também juntos educar os filhos. Talvez a regra de ouro que nos ensina esse trecho é que marido e mulher se devem amar como Cristo ama todas as pessoas: amor gratuito, desinteressado, capaz de se doar por completo. Na verdade esse é um projeto de vida para todos que seguimos a Cristo: Amar como Jesus amou.
por Pe. Deivith Zanioli