Ezequiel Ramin, Rosto da Missão
Tentou-se calar uma voz e uma missão logo no seu início, missão em favor dos índios, cujos direitos eram negados: por um lado o direito ao solo dos seus antepassados e por outro o direito a ter simplesmente um pedaço de terra para cultivar e manter-se a si e à sua família.
Apesar da tentativa de apagar os rastos, a voz do padre Ezequiel continuará pelo contrário a ressoar mais forte no testemunho de muitos que continuam a depor no processo sobre o seu martírio: leigos, irmãos, irmãs e missionários, padres e bispos. Um total de cerca de 95 testemunhos: 64 no estado da Rondônia e 31 em Pádua, onde o processo iniciou no dia 9 de Abril passado.
O início foi discreto, num salão ascético da cúria de Ji-Paraná, onde eram mais numerosos os papéis protocolares do que as pessoas; todavia, a oração do Pai Nosso dos Mártires e o canto Prova de Amor Maior não há, que doar a vida pelo irmão superaram o desfile formal de juramentos e o som dos carimbos nos documentos.
Pouco a pouco nos fomos dando conta que o percurso e a responsabilidade pedidos aos oficiais do processo eram exigentes e fundados. Todos percebemos que uma porta se abria para um único cenário possível: recuperar a memória de um jovem missionário, caído aos 32 anos como testemunha do evangelho da vida até derramar o seu sangue.
Escrevo, assim, deixando aflorar pensamentos, emoções e convicções que se vão formando nestes primeiros meses no Brasil a fim de edificar esta causa sobre o significado da morte violenta do servo de Deus padre Ezequiel Ramin, assassinado violentamente no dia 24 de Julho de 1985, na Rondônia, um dos estados da Amazônia legal, para defender o direito a um digno pedaço de terra “prometida” para todos.
PAIXÃO E ESPERANÇA
Tentem imaginar a colocação em confronto de duas fotos tão diferentes mas, no entanto, igualmente irrenunciáveis para colher o significado e o valor desta causa. Uma real, poderia dizer-se: os golpes da arma na cara, com um golpe à queima roupa na garganta, do comprimento de um dedo e o pó da estrada. A outra, na estampa da beatificação (Servo de Deus), com um sorriso do Ezequiel no dia da sua primeira missa. Duas fotos em perfeita continuidade de significado. A prova de quanto é verdade e quão real foi nele o mistério pascal: morte que corre na vida e no sorriso que promete primavera. Dois rostos, de facto somente um, o rosto de cada pessoa desfigurada que leva a marca de Deus e pode tornar-se o rosto transfigurado de quem partilha com os irmãos e irmãs paixão e esperanza.
O que nos diz então esta causa? A mim me parece antes de tudo um dom e uma graça que a igreja do Brasil oferece a toda a igreja e à família comboniana, que se quer renovar. Ezequiel é o rosto de uma igreja jovem que faz sua a causa dos pobres e crê na força transformadora dos pobres. Não só os que cairam devido à arrogância e à indiferença de muitos, mas também de todos os esquecidos, deixados à margem da vida e obrigados a aguentar escolhas humilhantes contra si mesmos, aceitando ser lixo.
Mas é ainda muito mais: esta causa nos obriga a mudar de perspetiva e a deixar de olhar para os pobres como gente a ajudar, mas como pessoas que reclamam com urgência a nossa conversão pessoal e de estruturas. O rosto desfigurado do Ezequiel diz que chegou o momento de pagar a conta de tantos abusos. O seu duplo rosto, martirizado e sorridente, diz que todo o rosto, também o mais desfigurado pela violência, pelo cansaço, e pela injustiça tem direito ao sorriso da dignidade, do respeito, do convívio, da confiança e da abertura justa e solidária. Ninguén deve implorar um sorriso de compaixão mas a cada pessoa deve ser dada a possibilidade real de fazer florescer a vida para si mesma e para os outros.
No fundo, é uma revolução que não admite mentiras, esmolas, meias medidas, meias verdades, mas quer ter o direito de viver e comunicar certezas. Se o rosto do Ezequiel é o rosto da missão que aceita colocar-se e escolher, isso obriga a pensar que a missão verdadeira é aquela que se faz com pobreza de meios e sem aparelhos de proteção; uma missão onde se privilegia a simplicidade, o contato, relação verdadeira, proximidade das pessoas, alegria da vocação cristã, preço inevitável a pagar. Tudo isto nos recorda a igreja saída de Aparecida e incarnada com simplicidade pelo papa Francisco.
Vem a propósito: a luta por um mundo mais justo e solidário não é batalha ideológica nem redução sociológica do evangelho, mas substância da verdade do evangelho que reivindica o direito à terra para todos e o respeito e o amor também pelo ser humano mais frágil, incluindo a flor mais pequena no jardim da Amazônia, que leva em si o peso da sobrevivência global e o arrogante desprezo de um planeta como terra a explorar.
Uma religião sem causas sociais é cómoda ilusão. Causas sociais sem religião (espiritualidade) são prestações que se fazem pagar a custo elevado pelos mais débeis. Então, ma igreja de rosto credível que aceita fazer um trabalho de discernimento sobre si mesma, antes de fazê-lo sobre os outros e que, com igual determinação, se coloca do lados dos mais frágeis, pedindo contas à riqueza perversa.
O rosto do Ezequiel nos traz ao pensamento os rostos luminosos e fortes de um Hélder Câmara, Pedro Casaldáliga, card. Paulo Evaristo Arns, Luciano Mendes, Adriano Hipólito, José Gomes e tantos outros igualmente grandes, mesmo se menos conhecidos fora do Brasil. Uma igreja que procura acertar o passo com o pobre e com todas as pobrezas provocadas pelo cinismo, pelo silêncio, pela razão de estado, pelas alianças e conveniências.
Termino com o pensamento de um bispo brasileiro que nos surpreendeu e comoveu: “Sou favorável ao início desta causa para que a igreja, depois de examinar os atos, possa exprimir um juízo favorável. Sem querer minimamente anteciparam juízo, creio que o padre Ezequiel tenha sido assassinado por ódio à fé que professava. O seu empenho pelas causas dos pobres e a sua preocupação pela sua segurança eram consequência prática da sua fé e do seu ministério. Os que o mataram já não conseguiam aguentar mais o seu testemunho. A violência nas áreas rurais e a insegurança da propriedade fundiária, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e a desflorestação, estreitamente ligada aos grandes projetos que destroem o ecossistema e que criam situações de miséria e de injustiça são realidades atuais e atuantes na Amazônia.
A igreja tem necessidade de exemplos e de intercessores. O martírio do padre Ezequiel Ramin faz dele um modelo de cristão que é preciso seguir e seria belo poder invocá-lo na liturgia. Eu desejo que esta causa avance e que um dia o nome do padre possa ser escrito na lista dos mártires. Assim se poderá fazer justiça também àquela multidão de missionárias e missionários que na Amazônia deram a vida pelo Reino”.
A esta ‘jóia’ que um verdadeiro pastor nos ofereceu, humildemente gostaria de acrescentar às suas palavras “multidão de missionárias e missionários”, também a multidão incontável de leigos, mulheres e homens, caídos no sulco dos direitos justos e do amor empenhado.
Porto Velho, RO (Brasil) – Pe Arnaldo Baritussio