Flagrantes de Hipocrisia
Hoje, a liturgia da Igreja Católica nos propõe dois processos perversos e duas conclusões surpreendentes. Nos bancos dos réus, duas mulheres. A primeira é Susana, filha de Helcias, “que era muito bonita e temente a Deus” (Dn 13,1-42). Casada com Joaquim, um homem muito rico que possuía um pomar junto à sua casa, Susana é vítima de uma falsa acusação. Dois anciãos, que exerciam a função de juízes, a acusam injustamente de adultério. Na realidade, os criminosos são eles. Apaixonados por ela, tentam violentá-la enquanto passeava no pomar de sua casa. Mas Susana, fiel ao marido e à Lei de Deus, prefere não pecar diante do Senhor a ceder às suas perversas vontades. Por vingança, os velhos juízes decidem denunciá-la. A mulher vítima passa a ser criminalizada, abusando de seu poder e contando com sua influência, viciam o processo com falsos testemunhos e manipulam toda a comunidade. Mas Susana não fica calada. Enfrenta-os corajosamente. Abandonada por todos, renova sua confiança em Deus e em sua inocência. E Deus não a abandona. Pois Ele é assim mesmo: está sempre presente na história humana, atento sobretudo ao clamor das vítimas e, como sempre faz, suscita alguém para tomar suas dores. Dessa vez, o escolhido é Daniel, um adolescente. Gosto dessa aliança entre os/as pequenos/as estimulada por Deus. “Eu acredito que o mundo será melhor quando o/a menor que padece acreditar no menor” (Jorge Pereira Lima). Só assim é possível encarar os abusos de poder e acabar com as injustiças. Os poderosos normalmente se aliam entre eles e encobrem reciprocamente suas falcatruas. Só quem padeceu as consequências do abuso de poder e da injustiça é capaz de compadecer-se, indignar-se, solidarizar-se e enfrentar os abusadores. Assim faz Daniel. Dotado da “honra da velhice”, senta-se ao centro e conduz o processo a partir do ponto de vista das vítimas. Com sua sabedoria, consegue desmascarar as contradições dos acusadores e provar a inocência de Susana. Bendito seja Deus que salva os que nele esperam através da mobilização dos/as pequenos/as. Benditas as mulheres como Susana que confiam no Deus da Vida e seguem seus ensinamentos e que, por isso, têm plena consciência de sua dignidade; que não se dobram às perversões dos machos predadores; que exigem respeito pelo seu corpo e sua dignidade; que não se calam e buscam corajosamente seus direitos. Benditos/as os/as pequenos/as como Daniel que, não têm medo dos poderosos e não se deixam influenciar pelas visões preconceituosas do “gado manipulado”, mas que cultivam o sonho de fazer justiça sem recurso à violência e arregaçam as mangas para que isso aconteça o mais rápido possível.
O segundo processo acontece no pátio do templo de Jerusalém (Jo 8,1-11). Dessa vez, a ré é uma mulher “surpreendida em flagrante adultério”. Não tem nome, pois para os escribas e os fariseus que a condenam não é uma pessoa, é uma adúltera. A partir daquele momento, ela passa a ser chamada pelo erro que cometeu. Essa maldita herança acontece até hoje. Quem comete um crime passa a ser identificado pelo artigo do código penal que infringiu. Seu nome passa a ser 157, 171, 121, 213… A maneira mais comum de se reportar a ele é “ladrão”, “trombadinha”, “bandido”, “desgraça”, “miséria”… Não falta, porém, quem reaja a essa situação e passe a chamar pelo nome, mas não é fácil. Na maioria dos casos, sofre retaliações.
As testemunhas da acusação, mais uma vez, são todos machos e com pinta de “gente de bem” que fazem questão de tomar distância de “gente do mal”. São mestres da lei e fariseus, funcionários do sagrado que, além de serem hipócritas, se equivocam muito a respeito de Deus ao ponto de achar que, para defender seus mandamentos, se pode até matar. “Colocar a lei antes da pessoa é a essência da blasfêmia” (Simone Weil). A lei de Moisés prevê neste caso a pena de morte por apedrejamento. O que chama a atenção logo de cara é que o adultério só acontece se houver mais de uma pessoa. Mas só a mulher é arrastada em praça pública e exposta a tamanho constrangimento. Mais uma vez prevalece a lógica machista que, a começar de Adão e Eva, perversamente afirma que “a culpa é sempre e só da mulher”. Os acusadores jogam literalmente a mulher aos pés de Jesus para desafiá-lo e terem motivos para acusá-lo. Jesus não diz nada. Abaixa-se. “Inclina-se diante do sagrado mistério da pessoa, não da formalidade do código penal” (Ermes Ronchi), Interessa-lhe a pessoa muito mais do que as providências legais, sobretudo quando são utilizadas injusta e preconceituosamente e servem para linchar, matar a sede de vingança, humilhar, consagrar preconceitos, rotular definitivamente as pessoas e matar qualquer oportunidade de futuro. Passa a escrever na areia. Ninguém consegue descobrir o que Jesus escreveu. Gosto de imaginar que escreveu na areia o pecado da mulher para o vento de sua misericórdia varrê-lo logo e definitivamente. Não manda lançar o nome da mulher no rol dos culpados, pois, apesar de seus erros, continua gravado nos Céus. Diante da insistência dos escribas e fariseus, Jesus ergue-se e diz: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. “Com uma só tacada, acaba com todo o ordenamento legal vigente” (Ermes Ronchi). É o fim de um sistema legal que, no lugar de corrigir o erro, acaba com a pessoa que o comete. Ninguém apresenta recurso, até porque ninguém gostaria de passar por esse mesmo linchamento. A audiência é concluída. Um por um, os presentes vão embora. Só ficam Jesus e a mulher. Santo Agostinho diz que ficaram a divina misericórdia e a mísera condição humana aflita pelo pecado. Então Jesus se levanta e lhe dirige a palavra com a mesma ternura com que se dirigia a sua mãe: “Mulher, cadê eles?”, pergunta. “Ninguém te condenou?”. “Ninguém”, responde ela. “Então Jesus lhe diz: ‘Nem Eu te condeno. Podes ir e, de agora em diante, não peques mais’”. Acabou o regime penal e começou o Ano da Graça. Inaugurou-se a sociedade sem grades que quer prender o erro e não quem o comete. É para jogar fora o pecado, não o pecador. Com o crime, nenhuma condescendência, mas às vítimas todo o suporte necessário para vencer o trauma e para quem o comete todo o apoio necessário para que não o faça nunca mais. A “execução penal”, assim como vem acontecendo, não repara o dano da vítima e nem resgata o autor do dano. Só faz dano. Dana a vítima ao esquecimento. Dana o autor a um sistema carcerário que desumaniza. Dana a sociedade que vai ter que aguentar as consequências da violência que as cadeias ensinam. Jesus nem condena nem absolve. Faz outra coisa: “libera o futuro daquela mulher, mudando não seu passado, mas seu futuro” (Ermes Ronchi). “De agora em diante, não peques mais”. Suas palavras bastam para reabrir sua vida à esperança. A cadeia, assim como ela se encontra hoje, prende as pessoas ao passado e as mergulha definitivamente no mal. Jesus não prende a mulher atrás de grades nem acaba com sua vida com longos períodos de pena restritiva de liberdade. Isso não serve para nada, senão para matar a sede de vingança e para dar vazão aos nossos impulsos mais perversos. Os dados confirmam o fracasso do sistema penitenciário. O Mestre levanta a âncora que a prende a um triste passado e solta as velas da sua vida para que, ao sopro do vento de Deus e de uma comunidade acolhedora, possa velejar rumo a um futuro de paz. Já não está mais interessado de onde vem, mas para onde vai. Ao depender da força que a comunidade vai dar, com certeza vai chegar a um destino seguro para ela e para a sociedade. Estou convencido de que a mudança para melhor de quem comete um crime vai fazer melhor a quem sofreu as suas consequências. Quem passou por isso dá um bom testemunho dessa nova perspectiva. A cultura da paz agradece. Em suma, “Jesus abre as prisões, desmonta os patíbulos e os palanques de morte sobre os quais arrastamos nós mesmos e os outros. Ele sabe que só homens e mulheres perdoados/as e amados/as podem semear ao redor de si perdão e amor, os únicos dons que nunca mais nos tornarão vítimas nem fora de nós nem dentro de nós. Não pergunta o que fez, mas o que pretende fazer. Escreve em seu coração a palavra futuro” (Ermes Ronchi). Esta é a unicidade de Jesus e do Deus que Ele veio revelar. Pegar ou largar. Camuflar, manipular ou usá-lo para justificar a violência nunca mais.
(Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)