“I Care”: O Paradigma do Cuidado, como alternativa à guerra
Evangelho
“Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar e ali te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta” (Mt 5,20-26)
Esta Palavra de Jesus é dramaticamente atual. E não me refiro à guerra entre Rússia e Ucrânia, pois este conflito não é uma exceção ou uma novidade. É mais um capítulo do clima de violência que se respira no mundo desde sempre. É hipocrisia achar que só agora tem guerra. Ele existe desde sempre e custa sair das páginas da história humana, mas não provoca toda esta comoção quando explode em áreas “marginais” do ponto de vista humano e com baixo interesse do ponto de vista econômico-financeiro. Estes conflitos não ocupam os noticiários e não preocupam o grande público. Permanecem na invisibilidade. Mas matam com uma ferocidade ainda maior justamente porque acontecem em surdina.
Um paradigma trágico
Eu sei que custa acreditar, mas precisamos admitir com absoluta sinceridade que a “guerra”, em todas as suas formas e dinâmicas, não é um evento acidental ou um fenômeno passageiro, mas o paradigma dominante da existência humana. Anda livremente pelas ruas de nossas cidades. Tem direito de cidadania em nossas casas, nos empregos, nas religiões, nas relações interpessoais, nos estádios, nos noticiários, no trânsito e, infelizmente, nos espaços destinados à educação formal. É assunto principal dos nossos estudos. Nas salas de aula, exceto raríssimas exceções, se fala mais dela do que dos tempos de paz. Os principais protagonistas da história apresentados aos jovens alunos são os heróis de guerra e não os construtores de paz. Até quando não é declarada, é ela que manda e regulamenta as relações interpessoais e internacionais através da desconfiança, do medo e da ameaça. Ninguém se sente seguro. Esta sensação de insegurança brota da desconfiança no outro, sobretudo no desconhecido. Rótulos como adversário, inimigo, opositor, suspeito… prevalecem sobre os conceitos de fraternidade e sororidade. Nos supostos períodos de paz, há uma insana corrida ao armamento. A produção de armas não para e o comércio cresce assustadoramente. Multiplicam-se os centros especializados onde se aprende a atirar e é possível conseguir assessoria para alcançar o tão desejado porte de arma. A ideia de fundo é que a paz só é possível preparando-se e equipando-se para a guerra. Essa lógica equivocada é desmontada pela realidade. Os fatos demonstram que há uma relação diretamente proporcional entre armamento e violência. Mais armas mais guerra.
2 pesos e 2 medidas
Dessa última guerra se fala tanto porque está acontecendo na porta do Ocidente, ao lado da casa dos Europeus e tem graves implicações na economia mundial. As cenas de destruição e morte são visíveis a olho nu. As águas turbulentas do conflito chegaram à altura do nosso umbigo. O medo de afogar é real. O barulho das bombas na Ucrânia trouxe até aos nossos ouvidos não só o clamor das populações envolvidas neste conflito, mas também o grito de dor dos povos dos conflitos esquecidos. Todas estas guerras estão acontecendo porque o mundo da globalização tão decantada continua dividido em blocos que buscam ampliar cada vez mais sua área de influência para impor seu próprio império. Apesar de toda conversa a respeito da autodeterminação dos povos e das nações, continuamos sendo peças de um xadrez onde uns poucos contendentes, fortes em seu potencial bélico, nos movimentam conforme seus interesses até dar xeque mate no adversário. O modelo de globalização que nasce do paradigma da violência só está interessado em escancarar as portas do mercado e dos centros financeiros, mas mantem rigorosamente fechadas as portas das casas. Só os capitais podem se movimentar livremente de um lado para o outro do mundo, enquanto os seres humanos, sobretudo, aqueles que não têm capital, são rechaçados. Enquanto o dinheiro encontra acolhida nos braços abertos do mundo financeiro, os pobres afundam no Mediterrâneo ou são massacrados na beira do Oceano Atlântico como aconteceu com o Moïse, o jovem congolês prófugo de uma guerra invisível, que foi barbaramente assassinado num quiosque de uma famosa praia do Rio de Janeiro. Para o dinheiro foram até criados “paraísos fiscais”, enquanto para a maioria dos seres humanos se abrem as portas do inferno da miséria, da fome e da guerra.
Sirvo a Deus ou a um ídolo?
O pior de tudo é constatar que até as religiões entram em guerra. Às vezes para justificá-la, outras vezes para abençoá-la, outras vezes ainda como iniciativa em defesa dos interesses de deus. Optei pela minúscula, pois um deus assim não passa de um ídolo à imagem e semelhança dos senhores da guerra. Estes fazem da guerra uma medida profilática necessária para “limpar” o mundo de comportamentos desviantes acabando com os pecadores que os promovem. Assim, a religião se transforma em terrorismo, perversidade que atribuímos quase sempre aos outros, sem pensar que ideias como estas circulam também dentro de igrejas cristãs. Não sei de onde alguns cristãos defensores das armas e incentivadores do ódio tiram essa imagem distorcida de Deus. Pode até acontecer que alguns trechos do Antigo Testamento, lidos fora do contexto e sem a luz de Jesus de Nazaré, induzam ao erro, mas uma leitura atenta dos textos bíblicos desautoriza esta visão. Deus abomina a guerra. Não tolera a violência. O profeta Ezequiel diz isso claramente: “Será que eu tenho prazer na morte do ímpio? Não desejo, antes, que ele mude de conduta e viva? Mas se o justo se desviar de sua justiça e praticar o mal, imitando todas as práticas detestáveis feitas pelo ímpio, poderá fazer isso e viverá? Da justiça que ele praticou, nada será lembrado” (Ez 18, 23-24). A violência para as pessoas que praticam a fé cristã é DESVIO DE CONDUTA. Contradiz totalmente o Evangelho. Afasta da prática de Jesus de Nazaré. Deus detesta a violência até aquela justificada para corrigir o “ímpio”. O mal praticado pelos outros não nos dá o direito de nos tornarmos cruéis (William Shakespeare). De seus filhos, fraternidade e sororidade. À luz de sua justiça, que não tem nada a ver com vingança, é condenável toda ação que visa matar o/a outro/a não só fisicamente, mas também moralmente, psicologicamente, verbalmente e afetivamente. A violência externa é sinal da eliminação interior do outro. Nasce quando se exclui a outra pessoa do próprio coração. É por isso, que o paradigma excludente da violência, precisa ser substituído pelo do “I care”, isto é, do cuidado que outra coisa não é que abrir o coração para a acolhida e para o amor. O coração que ama dessa forma é o melhor ato de culto ao Deus cristão. Se nosso coração não funciona assim, procuremos logo a cura antes que seja tarde demais.
Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano