
Invisíveis ou não vistos?
Se você tem 10 pessoas e apenas seis laranjas, qual o resultado desta operação matemática? A resposta é simples: vai dá um e sobrar quatro. Ou seja, seis pessoas irão receber uma laranja cada, mas quatro pessoas não irão ganhar nada. Nem mesmo uma mísera laranja.
Em 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Fruto do pós guerra. Os noticiários de hoje nos mostram cenas das guerras travadas na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Atrocidades cometidas contra os civis. Desrespeitos de todos os lados. Em uma guerra, existe lado? Estão todos no centro onde se há somente morte e tristezas, sofrimento e perdas.
Por aqui, travamos uma guerra silenciosa. Não se vê, não se fala e, o pior, não se sabe o que fazer. Percorrendo as ruas das cidades é possível presenciar cenas de morte. Mortes em vida. Pessoas perambulando pelas ruas em busca de sobrevivência através daquilo que não presta, que não serve e que foi descartado. É uma latinha vazia de cerveja, um papelão que serviu para proteger uma Smart TV de 75 polegadas dotada de inteligência artificial, ou mesmo, um marmitex descartado ao pé de um poste, com algum arroz branco e uma batata cozida ao centro.
Nos tempos atuais são muitos os casos de pessoas que se valem dos psicofármacos para conseguir suportar os desafios e dilemas vividos diariamente. O medo, a insegurança, a incerteza, o sentimento de fragilidade e impotência, para tudo isso se tem um remédio que resolve: velija, fluoxetina, escitalopram, bupropiona, alprazolam, bromazepam, clonazepam…. a lista é grande e diversa. Mas, e para quem passa pelos mesmos problemas, mas que não tem dinheiro para pagar um tratamento, e nem mesmo um medicamento? E quem não tem o mínimo de conhecimento para relatar a um profissional médico, de um posto de saúde, sobre o que está sentindo? Para quem já não tem nada, não tem casa, família, amigos, dinheiro, só lhe resta a rua.
É na rua que estas pessoas encontram quem aceita lhe ouvir e ser ouvido. É na rua que se encontra aqueles que são seus iguais e não superiores. É na rua que se encontra os remédios baratos para os males da mente e do corpo: a cachaça e o crack. A cachaça entorpece, esquenta o corpo e a alma, a cachaça afugenta os pensamentos sombrios e de medo. É a cachaça que faz esse povo da rua superar, dia após dia, suas deficiências, suas angústias e seus problemas mentais. O crack retira a pessoa desta realidade. A transporta para um mundo onde ele se sente confortável. Não sente as dores. Não sente a rejeição. Não sente fome. E daí, quando o efeito passa e realidade das ruas ressurge em sua vida, busca uma nova dose, não do medicamento da farmácia, mas do medicamento da rua.
Em 11 de dezembro de 2023, o Governo Federal publicou a Lei Padre Júlio Lancellotti (Lei nº 14.489/2022) que proíbe a aporofobia (medo e rejeição aos pobres) nos espaços públicos, onde são instalados equipamentos para que essas pessoas em situação de rua não possam ficar, nem para dormir. Um pequeno passo para um tão grande problema. Mais do que coibir a prática, a lei denota que estas pessoas estão sendo vistas e inseridas no centro das sociedades e não mais deixadas de lado. É o começo. A Lei veio acompanhada do plano Ruas Visíveis que irá contar com investimentos de quase R$ 1 bilhão em ações voltadas para os sem-teto, para o povo em situação de rua. O ministro Silvio Almeida ressaltou que este é o mais completo conjunto sobre o tema desde a Política Nacional para a População em Situação de rua (de 2009).
Resultado social. Se sobra 4 na matemática das laranjas, em nossa sociedade sobra milhões. Onde tudo vira produto e lucro, os mais débeis, os mais simples, sobram pelas ruas, pelos viadutos, pelas áreas degradadas. Simplesmente, sobram. São deixados de lado, rotulados, condenados e desprezados. A matemática é exata, tal qual é exato o resultado de uma sociedade que não quer ver o outro ou a outra. Por ser pobre, por não ter nada a oferecer em troca e por não ter nem como comprar um rivotril. Não se divide. Se quer tudo para si. Se houver uma oportunidade, que esta seja para mim ou para os meus. E é desta forma que a nossa sociedade não é capaz de dividir seis laranjas por 10 pessoas. Haverá sempre aquele que irá querer a laranja só para si. Mas, pode ser que na próxima divisão, seja ele o que sobra.
Por Tranquilo Dias,leigo missionário comboniano