De Comboni aos combonianos: ainda pulsa o sonho?
Por que Daniel Comboni é considerado um profeta para África? Qual o legado que esse grande missionário deixa para nossa igreja? O que podemos aprender dele para responder ao grito da humanidade de hoje?
Tentemos juntos responder a essas perguntas, que se tornam também uma oportunidade para verificar se os filhos de Comboni, Missionários e Missionárias Combonianos, estão sendo fieis à sua profecia, aqui no Brasil, 150 anos depois.
Salvar a África com a África
Comboni viveu num contexto de exploração e saque do inteiro continente africano por parte das grandes potências europeias. Um contexto de colonização, garantido pelo poder das armas e alimentado pela prática da escravatura. A própria igreja, além de ser em diversos casos diretamente cúmplice desse sistema de dominação, frequentemente considerava a evangelização como uma prática redentora de culturas ainda não desenvolvidas. Salvar essas culturas e pessoas significava trazê-las para o cristianismo e garantir-lhes, assim, o favor de Deus. Comboni e outros grandes missionários da época, apesar de serem em muitos tratos filhos de seu tempo, entendem o verbo ‘salvar’ na conjugação ao tempo presente.
Não se trata só de alcançar uma morada no céu, mas de defender a vida na terra.
Por isso, o fundador de Missionários/as Combonianos trabalhou intensamente no resgate dos escravos e organizou seu trabalho missionário a partir de um Plano para a Regeneração da África. Esse Plano tinha como estratégia principal a educação, investindo em escolas de formação e universidades que capacitassem os próprios africanos a serem protagonistas de sua história de libertação.
Ainda hoje, na África, Comboni é amado e respeitado como “um homem que acreditou em nós: ele é um de nós”.
Os combonianos no Brasil ainda acreditam nesse princípio essencial da missão. Hoje podemos chamá-lo de empoderamento popular, ou, em chave pastoral, de ministerialidade.
Acreditamos que a vida da igreja está nas mãos de muitos ministros, leigas e leigos que mergulham na vida do povo e o servem através das diversas pastorais, nas comunidades eclesiais de base. Enfrentamos cotidianamente o desafio de ‘reinventar’ uma igreja ministerial, já que, em muitos casos, nesse tempo eclesial tende-se a esvaziar o papel dos leigos e das mulheres, verticalizando a dinâmica do poder, empobrecendo o protagonismo das pessoas e valorizando o fenômeno religioso dos eventos de massa, onde se perdem os vínculos comunitários.
Missão difícil
A vocação de Daniel Comboni nasceu quando, ainda adolescente, leu as histórias dos missionários mártires no Japão. Gente que deixou tudo para seguir as pegadas de Jesus em terras onde ele ainda não era conhecido. Testemunhas da fé até o fim, entregando sua vida inteira.
Daí para frente, Comboni não se conformou à vida tranquila e protegida de sua Paróquia e pequena vila. Sonhou para além dos confins de suas terras e de sua imaginação. Teve a coragem de deixar os pais (apesar de ter ficado o único filho ainda vivo) e começou a consolidar sua vocação missionária. Cedo compreendeu que a missão o chamava à África.
Tudo para inventar: regiões desconhecidas, onde Comboni teve que aprender idioma, cultura e estilo de vida local. Caminhos a descobrir e metas a serem intuídas, a partir daquilo que Deus falava através do povo, nas terras do Sudão. Não existia um modelo de missão, nem a segurança que uma ou outra iniciativa pudesse dar certo.
Precisava ao mesmo tempo de humildade (para aceitar as derrotas, sem desistir) e de ousadia (para sonhar além do previsível). Não era missão para heróis solitários: Comboni sempre fez questão de se cercar de colaboradores. Mulheres e homens das diversas regiões do Sudão e do Egito, mas também assessores para compreender os caminhos do Evangelho naquelas terras: antropólogos, linguistas, geógrafos… e missionários de outras ordens religiosas, que Comboni considerava como mestres e modelos de vida.
Hoje, consideramos “missão difícil” aquela à qual poucos querem se doar. Parece uma definição meio fraca, teologicamente, mas bem concreta, nos casos em que a Igreja tende à acomodação. A tentação, de fato, é instalar-se onde já existe aprovação, sucesso, talvez até… um bom dízimo!
A Igreja do Brasil, por exemplo, chama para a Amazônia, provoca à saída às periferias da violência urbana, desafia para assumirmos pastorais específicas e abrirmos caminhos novos de construção do Reino de Deus.
Os povos da Terra apelam à Igreja missionária, para que não se esconda atrás das grades de sua cultura local. Ainda hoje a Mãe África pede ajuda a seus filhos da diáspora e abre seus braços a missionários e missionárias que lhe levem a Paz do Ressuscitado. E nossa irmã Ásia, em sua sabedoria misteriosa e profunda, convida ao diálogo das religiões, nos diversos caminhos onde habita o Deus da Vida.
Opção pelos mais pobres e abandonados
Mesmo precisando do apoio das grandes potências colonizadoras e de suas infraestruturas para entrar nas terras africanas, Comboni sempre teve a lucidez de tomar posição e assumiu a opção clara para os mais pobres e abandonados. Declarou-se publicamente “um inimigo acirrado da escravidão”, denunciou a “cooperação direta ou indireta ao tráfego desumano dos escravos” e refletiu que o tráfego de pessoas estava sendo considerado “artigo de especulação industrial”. É dramático que ainda hoje essas palavras sejam atuais, num cenário de indiferença globalizada.
Esse é o chamado mais urgente para a missão cristã: o valor de nossa fé será testado no campo da justiça, da paz, do cuidado para com a Mãe Terra, do amor político. Desde a época de Comboni até hoje, muitas missionárias/os deram sua vida para esse ideal. Mártires na luta pela terra, pelos direitos das minorias e a liberdade religiosa.
Acreditar no Ressuscitado é lutar, com a força de seu Espírito, para tirar da cruz os crucificados de hoje. Opção prioritária da Família Comboniana é a vida ao lado dos povos indígenas e afrodescendentes, a defesa e promoção dos direitos humanos, a luta contra o acaparamento de terras e a devastação ambiental, o empenho frente à trata dos seres humanos. Mas não no espírito de profetas solitários, e sim a partir da comunidade cristã, um lar onde a Palavra de Deus inspira e fortalece, a partilha nos vincula em aliança e a misericórdia se faz opção para os mais pobres e abandonados.