Morte de indígenas, Maranhão. Alerta! Lei e justiça infames
O Senhor Quiroga Filho é o mesmo juiz que condenou em março deste ano três indígenas acusados de ter assassinado em 1999 dois comerciantes de Barra do Corda…
Infelizmente, no atual momento histórico, tudo parece encontrar solução na bala, no grito, na farda, na porrada e na prisão. Silenciados estão, contudo, os gritos e as dores de centenas de aldeias das Terras Indígenas.
Policial militar enfrenta indígenas no acampamento Terra Livre – Brasília
por Claudio Bombieri, comboniano,
presidente da Associação Carlo Ubbiali
1. Maranhão: tabuleiro em ebulição
Mal baixou a poeira do trágico assassinato que ceifou a vida de três indígenas na Terra Indígena Canabrava, sábado 07, que o Juiz de Barra do Corda, Sr. Quiroga Filho, informou, no dia 11 de dezembro, que irá levar a júri popular três índios Guajajara da mesma Terra Indígena supostamente envolvidos numa tentativa de homicídio de um delegado de Grajaú. Há cerca de dez anos atrás, o policial quis forçar a passagem por uma barreira erigida pelos indígenas na BR 226. Mesmo alertado para respeitar a decisão indígena, o delegado reagiu extraindo o revólver, dando alguns tiros intimidadores, e provocando a ira dos indígenas presentes que reagiram à sua agressão ferindo-o, levemente, na mão. Foi o suficiente para o juiz considerar os indígenas potenciais assassinos!
O Senhor Quiroga Filho é o mesmo juiz que condenou em março deste ano três indígenas acusados de ter assassinado em 1999 dois comerciantes de Barra do Corda que, lamentavelmente, transitavam pela BR 226 logo após o atropelamento de um filho do cacique Moisés Guajajara. À época, um grupo de mais de 40 pessoas revoltadas com mais uma morte trágica, dominados pela comoção e sob uma forte emoção, acabaram ‘vingando a morte do parente’ nos primeiros transeuntes brancos que apareceram naquele momento. A Funai, para aplacar os ânimos dos regionais que ameaçavam invadir as aldeias, apresentou à justiça três jovens Guajajara, – alguns de menor idade, – que passaram longos sete anos na 9ª Delegacia de São Luís, à espera de um julgamento que veio, de forma viciada, 20 anos mais tarde. Mais uma vez, os crimes cometidos por indígenas nunca prescrevem! Com eles a ‘justiça demora, mas não falha’!
No dia 13 de dezembro foi veiculada e confirmada a notícia de que mais um indígena Guajajara foi encontrado esquartejado juntamente com outra pessoa não indígena, dentro da T.I. Arariboia. A vingança parece ter sido o motivo mais plausível.
E, finalmente, no mesmo dia veio a confirmação da chegada à Barra do Corda da Força Nacional de Segurança Pública encaminhada pelo atual ministro da justiça, Sérgio Moro, no intuito de repor a ordem e a segurança naquela conflituosa região.
Há, nesse complexo tabuleiro, peças que exigem uma análise mínima, aprofundada, pois há, de sobra, inúmeras e trágicas tendências e coincidências.
2. Dois mundos, duas culturas, duas identidades
No imaginário comum majoritário, seja ele o regional/popular, bem como o institucional/burocrático, os indígenas Guajajara estariam perfeitamente ‘integrados’ ou, como outros afirmam, ‘aculturados’, ou seja, destituídos da sua cultura originária, específica. Os indígenas, hoje, seriam perfeitamente conscientes de seus deveres e direitos para com a sociedade e o estado. Logo, nessa lógica de pensamento, os indígenas são plenamente responsáveis de todos os seus atos. Aceita-se, ainda, o cômodo equívoco segundo o qual o fato de os indígenas possuírem tecnologia, e usarem bens de consumo típicos da sociedade não indígena, estariam assumindo, simultaneamente, também seus modelos culturais. O fato de um indígena, por exemplo, saber falar razoavelmente bem o português e manipular com destreza um celular não significa, no entanto, que ele tenha deletado, automaticamente, as suas categorias de compreensão e de interpretação do universo, adquiridas em seus processos de socialização na sua aldeia. É muito comum ouvir expressões tais como ‘eles, os indígenas Guajajara, são iguais a nós’, para significar que ‘eles perderam a sua cultura’! Portanto, ‘chega de considerá-los diferentes e coitadinhos. Eles sabem muito bem o que fazem!’… e assim por diante. Em tudo isso há um claro propósito de ignorar a existência de diferentes e distintos níveis de compreensão de mundo entre os próprios indígenas Guajajara. Muitos não indígenas não conseguem entender que ao lado de setores indígenas profundamente conhecedores da complexidade da realidade social, cultural e política, regional ou nacional, existem outros setores do mesmo povo que mal falam a ‘língua oficial’ e que possuem formas de compreensão limitadas à sua realidade local, e que mantêm relações esporádicas com a sociedade do seu entorno. Longe de transformar todos os índios, indistintamente, em meras vítimas ‘relativamente capazes’, tolhendo-lhes responsabilidade e autonomia decisória, é inegável que não se podem jamais ignorar os distintos níveis de compreensão, de conhecimento e de responsabilidade (penal, inclusive) existentes, hoje, no complexo e amplo mundo dos Guajajara.
Não se pode desconhecer que o povo Guajajara, na sua vasta pluralidade cultural, vem vivenciando o que poderíamos definir como uma espécie de ‘mutação identitária’! No intricado jogo de aceitação e de desconfiança, de disputas e de colaboração, de agressão e de tolerância com seus vizinhos, os Guajajara vêm sendo obrigados a reformular constantemente o seu ‘Ser Guajajara’ tendo em vista a sua sobrevivência física e étnico-cultural. Diante das mudanças rápidas e radicais da sociedade em geral, os Guajajara tiveram que acelerar e reformular também o seu ‘ritmo cultural’. De um lado, evitando a sua incorporação pura e simples ao ‘ser não indígena’ e, do outro, procurando manter ainda em suas mãos, de forma razoavelmente autônoma, as rédeas do jogo da ’convivência social’. Ou seja, continuar a ser Guajajara de forma diferente, mas sem assumir o ‘ser do outro’. Aceitar, conviver e colaborar com o ‘SER Karaiw/branco’ sem abrir mão do seu ‘SER Guajajara’. Como diria o grande bispo católico Dom Hélder Câmara ‘Mudar, sempre, para continuar a ser o mesmo’!
3. A sociedade etnofóbica da ‘tolerância zero’!
Sem querer mistificar um passado recente, observa-se, contudo, que uma década atrás havia, ainda, entre os não-indígenas, pessoas que reivindicavam com certo orgulho uma indefinida ascendência indígena. Parecia haver um esforço sincero em reconhecer a normal existência e aceitação das diferenças culturais. Muitos ‘Karaiw’ entendiam que também entre os indígenas coexistiam, misturadas, contradições e formas de colaboração/solidariedade, como ocorre em qualquer sociedade. Ao contrário, hoje em dia, tem-se a impressão que vem prevalecendo um desavergonhado julgamento popular, quase consensual, de condenar, sumariamente, tudo o que procede do universo indígena. O cometimento de ilícitos por parte de ‘alguns índios’, se transforma para o conjunto da sociedade num ‘ilícito coletivo’, de todos os indígenas, indiscriminadamente! É como se os indígenas não pudessem jamais cometer um crime, mas somente ser vítimas! É como se os indígenas, – idealizados por desconhecimento e ignorância, – fossem ainda os últimos representantes da pureza e da convivência harmoniosa que os não indígenas já não conseguem mais produzir. Ao não corresponderem, parcialmente, a essas formas de mistificação, os indígenas parecem ter destruído definitivamente aquele ‘paraíso terrestre’ que os não indígenas haviam projetado, e onde eles mesmos se sentiam ainda contemplados e acolhidos. A raiva da decepção e da desilusão justifica qualquer tipo de ação repressiva, policial ou não. E libera o ‘EU censor e moralista’, para praticar todo tipo de agressão e insulto, desprezo e humilhação moral contra aqueles dos quais se esperava só coisa boa, mas que não corresponderam! E se, além disso, existe uma fonte inspiradora de cunho negativo para tais ações anti-indígenas, – que tem sua origem na própria presidência da República, – então, todos os regionais podem se sentir investidos de uma espécie de mandato legítimo para atentar à integridade física e moral de qualquer indígena que aparecer no caminho! Estariam, afinal, cumprindo com o seu dever cívico de colaborar com o chefe supremo da nação!
4. Justiça infame: aos amigos os favores da lei; aos ‘índios’ os rigores da lei!
Um outro elemento que salta aos olhos em todos esses acontecimentos é que a justiça formal, aquela que é ‘tramada’ nos fóruns, delegacias, gabinetes e varas, utiliza como metodologia sistemática a dos ‘dois pesos, duas medidas’, a segunda do freguês que é indagado e processado. Se é verdade que esta parece ser, talvez, uma tendência generalizada no nosso País quando se trata de ‘pobre, preto, puta e… periférico’, no entanto, no caso em que o suspeito ou o réu é um indígena, sabe-se, de antemão, que a sua condenação é certa. Na onda do ‘punitivismo e do subjetivismo judicial’ que assola amplos setores da atual ‘Justiça’ do nosso País, Juízes e Promotores, disputam entre si ‘a pena exemplar’ a ser infringida ao réu indígena. E quase sempre é acolhida com aplausos por uma imensa plateia sempre mais ávida de castigos, não de ‘restauração humana’!
Levar, por exemplo, a júri popular um caso que envolve indígenas na região de Grajaú-Barra do Corda, – em cujos bancos (do júri) jamais sentará um representante indígena, – é condenação certa, considerados os sentimentos de ódio e de intolerância existentes contra os vizinhos indígenas. Ou, julgar, com os olhos e os condicionamentos de hoje, – após 20 anos do cometimento de um crime, – a responsabilidade penal dos envolvidos indígenas, soa a má fé. Não somente porque o crime deveria estar prescrito, ou porque os réus ficaram esperando ‘injusta e provisoriamente’, na cadeia, por longos sete anos um julgamento imparcial, mas também porque nunca lhes foram oferecidas as condições ‘diferenciadas’ mínimas de defesa. De fato, nem juiz e nem promotores em momento algum consideraram as evidentes dificuldades de compreensão linguística e cultural, disponibilizando, por exemplo, um tradutor ou um antropólogo. Nada de específico e diferenciado para os indígenas que, ironicamente, são considerados ‘iguais a nós’ (a nós, quem, afinal?) na hora de serem punidos pelos ‘karaiw/brancos’! Ficaremos aguardando, contudo, que essa mesma ‘Justiça’ seja célere e eficiente em identificar e capturar os assassinos dos três indígenas assassinados no dia 07, entre El Betel e Boa Vista, do adolescente indígena esquartejado no dia 12 do mesmo mês na T.I. Arariboia, e de muitos outros homicídios e atropelamentos fatais de Guajajaras, jamais investigados, e julgá-los com a mesma ‘imparcialidade’ que os ‘três réus indígenas’ atualmente aprisionados em Barra do Corda!
5. O tempo acabou! ‘Chega de diálogo e de negociação com índios’!
Um último elemento a ser considerado nessa análise despretensiosa nos é ditado pela atuação daquelas instituições federais ou estaduais, (PF, Polícia Civil, Secretarias, Varas, Eletronorte, etc.) que lidam direta ou indiretamente com os indígenas, os Guajajara da BR 226, especificamente. Parece existir, – embora com as devidas exceções, – uma tácita compreensão de que o diálogo, a negociação paciente, o ‘antropologicamente correto’, as audiências públicas, o respeito das competências formais em Terras Indígenas, os TACs, etc, se esgotaram de vez. Tem-se a impressão que segundo esse conjunto de instituições chegou a hora de começar a tratar os índios sem lhes conceder ‘privilégios e atenuantes’ de qualquer gênero. Como se, até agora, elas tivessem praticado rigorosamente tudo isso! No momento atual, não sentem nenhuma pressão social para inibir ou censurar seus abusos. Os povos indígenas, hoje como no passado, continuam sendo considerados um ‘estorvo ao progresso do País’. Eles e seus imensos territórios mal aproveitados estariam atrasando o pleno desabrochar do gigante que se autodefine produtivo, ordeiro, democrático. Para os senhores do desenvolvimento a qualquer preço é inaceitável tolerar qualquer tipo de ‘baderna, onda, mobilização, barreira, vigilância, vandalismo’ indígena à implantação escancarada de um modelo econômico e cultural que é patentemente espoliador.
Poucos setores da sociedade percebem que, hoje em dia, a única forma que os povos indígenas possuem para serem vistos, ouvidos e respeitados continuam sendo aquelas formas de resistência ativa consideradas ‘ilegais’ pelo estado e seus sequazes. Acabou a comoção nacional quando um índio é assassinado. E não são mais objeto de solidariedade e de atenção pela imprensa subserviente, suas ‘insignificantes’ reivindicações por água potável, educação diferenciada, assistência médica respeitosa, estradas de acesso, terra livre, etc. Poucos enxergam nas cegas omissões, nas reiteradas negligências e nas criminosas cumplicidades do estado e de várias instituições, com relação aos povos indígenas, verdadeiros atos ilegais a serem coibidos e punidos. Nesse momento alucinante da nossa história é como se o estado fosse incapaz de cometer ilícitos, ou como se ele tivesse em mãos um amplo e permanente mandado de ‘excludente de ilícito’ para aprontar impunemente contra os povos indígenas e tantos outros grupos sociais. Muitos indígenas se distanciam de ‘um conjunto de leis, decretos, portarias, liminares, PECs, etc’, pregados por um estado que os excluiu sempre mais, e por isso mesmo aqueles (indígenas) já não podem reconhecer como parceiro. Por causa disso, os povos indígenas no Brasil acabam assumindo aos olhos de tantos hipócritas institucionalizados uma aparente ‘ilegalidade’. Contudo, mediante suas ‘legítimas mobilizações’, eles desmascaram e responsabilizam, diretamente, um estado cada vez mais agressor e que age impunemente. E o destituem de sua pretensa ‘legalidade e legitimidade’. Em outras palavras, o estado, hoje, no que diz respeito à sua relação com os povos indígenas, é o verdadeiro criminoso a ser combatido e detido!
Existem, de fato, inúmeras provas em que o estado, ao longo desses 4 anos, através de suas políticas e polícias, – sob o pretexto de combater o ilícito indígena, -‘tem invadido’ a alma e o território dos Guajajara. Tem violado, sem mandado judicial, os domicílios indígenas, ameaçando e agredindo pais de família, destruindo e roubando objetos e bens pessoais, e prendendo como reféns pessoas inocentes e torturando-os para que entregassem ‘os supostos culpados’. No caso específico do trecho indígena na BR 226, altamente conflituoso, se de um lado é inegável uma participação indígena no cometimento de ilícitos, do outro lado é indiscutível a proteção e o suporte que é fornecido por grupos externos. Pessoas poderosas que vivem no entorno e que jamais são investigadas nem questionadas pela Polícia Civil e/ou Federal, ou pela própria Promotoria Regional. É mais fácil prender o ‘peixe pequeno e mais frágil’ e, sob o pretexto de garantir paz e segurança ‘aos cidadãos de bem’, cometer abusos de todo tipo contra ele. Se houvesse, de fato, por parte do estado, o real interesse em debelar a praga dos assaltos e de outros ilícitos, começar-se-ia a investir na ‘inteligência’ e em políticas públicas específicas. Algo que não interessa ao estado-cúmplice! Absolutamente.
O recente envio da Força Nacional de Segurança Pública à Terra Indígena Canabrava, além de se constituir numa ‘ilegalidade’, – pois em momento algum as comunidades indígenas afetadas foram consultadas sobre a sua necessidade e/ou conveniência, – irá impactar, mais uma vez, negativamente, o cotidiano das comunidades. E, dessa forma, adiar-se-á, mais uma vez, uma solução definitiva para os conflitos existentes. Algo que jamais virá mediante a intervenção de um grupo militar armado, e despreparado para lidar com indígenas. Infelizmente, no atual momento histórico, tudo parece encontrar solução na bala, no grito, na farda, na porrada e na prisão. Silenciados estão, contudo, os gritos e as dores de centenas de aldeias das Terras Indígenas desse Estado, e de tantas outras que abrigam milhares de indígenas sedentos de paz, de harmonia, de convivência fraterna, e de respeito.
Está faltando escuta e diálogo franco e amigo
São Luís,18 dezembro, 2019
Fotos: Zeze, pixabay e arquivo Sem Fronteiras