Na Via de Damasco, Deus passa a rasteira na intolerância
De Jerusalém a Damasco é muito chão. A viagem é longa e cansativa. No meio está o deserto. Mas é o “zelo pela Lei” que dá a Saulo a energia necessária para encarar as dificuldades. Por “amor ao Deus dos Pais”, deve prender os cristãos a qualquer custa. No entanto, não lida com o imprevisto. A poucos quilômetros do destino, uma luz deslumbrante desce do céu e o envolve. Não é uma luz qualquer. É a mesma que ilumina o Monte Tabor no dia da Transfiguração (Lc 9,28-36). Lucas, autor do Livro dos Atos dos Apóstolos, faz isso de propósito. No Monte Tabor acontece a Transfiguração de Jesus. No caminho de Damasco, num contexto de ódio e perseguição, se dá aquela de Saulo. O “inimigo” da Igreja está prestes a tornar-se Apóstolo do Evangelho. Saulo perde o equilíbrio e cai ao chão. Ouve-se uma voz que começa o diálogo com uma pergunta desconcertante: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. É um soco no estômago para quem acredita agir com “justiça” e ter sempre tomado as defesas de Deus. Ainda há esperança de que o Senhor tenha errado de pessoa, mas o resto do diálogo não deixa dúvidas: é Saulo que está no caminho errado. Os cristãos não são inimigos de Deus, mas as Suas testemunhas, porque decidiram deixar tudo para seguir Jesus Caminho, Verdade e Vida ao ponto que já não vivem por eles mesmos, é Cristo que vive e sofre neles. A fé não é a adesão a uma doutrina ou obediência cega à lei, mas é o encontro com Jesus. É colocar-se a caminho para segui-Lo, fazendo do seu Evangelho o próprio projeto de vida.
O Deus de Jesus de Nazaré é feito assim. Aguarda atrás da esquina para “passar rasteira” nas nossas presunções religiosas, jogar por terra as imagens distorcidas que inventamos a respeito d’Ele, purificar nossas visões erradas à luz do Evangelho, mostrar Seu verdadeiro rosto, tornar conhecida Sua vontade e nos envolver em Seu projeto. Esta Sua intervenção precede qualquer nossa iniciativa. É uma mudança radical do conceito de conversão. “Imaginei a conversão – escreve pe. Ermes Ronchi – como uma penitência do passado, como condição imposta por Deus para receber o perdão… Pensei que encontraria Deus como resultado e recompensa pela minha mudança. Mas que boa nova seria um Deus que “paga” de acordo com o nosso desempenho e retribui de acordo com nossas prestações? Jesus vem revelar-nos que o movimento é exactamente o contrário: é Ele que sai por primeiro ao meu encontro, que me alcança, que habita em mim. De graça. Antes de eu fazer alguma coisa, antes que eu me torne bom, Ele se aproxima de mim. Então eu mudo minha vida, eu mudo a luz, eu mudo a maneira de entender as coisas. A verdade é que estamos imersos num mar de amor e não o percebemos (P. Vannucchi). Quando finalmente nos damos conta disso, a conversão começa. O véu cai dos nossos olhos, como aconteceu com Saulo na via de Damasco.”
Saulo pensava que estava vendo tudo claramente. Achava que estava em sintonia com Deus e cumprindo rigorosamente a Sua vontade. Considerava-se um exemplo de “justiça” e um zeloso defensor de Deus. Na realidade, vagava nas trevas. No caminho de Damasco, ele fica cara a cara com Jesus, que lhe propõe um novo caminho à descoberta do verdadeiro rosto de Deus. A condição é deixar-se conduzir com confiança como um cego. Não é uma coisa fácil para quem sempre esteve acostumado a dirigir e mandar. A meta é a comunidade cristã, a mesma contra a qual estava prestes a soltar sua “ira religiosa”. É lá que Saulo terá de se apresentar para conhecer Jesus, o verdadeiro rosto de Deus, graças ao testemunho dos seus discípulos.
Mas, para que tudo isso aconteça, é necessário que haja outra conversão. Desta vez na comunidade cristã. Ananias, indicado pelo Espírito a instruir Saulo, também precisa mudar. Sua desconfiança com Saulo é grande. Ele conhece seu histórico de perseguidor. Não consegue confiar nele. Desconfia que sua conversão seja um estratagema para se infiltrar no meio dos cristãos, identificá-los e prendê-los. Na resistência de Ananias, Lucas retrata a fadiga da comunidade cristã em aceitar que Deus possa agir através de pessoas que não fazem parte de seu restrito círculo de simpatizantes e por meio de situações que fogem ao controle da instituição. É o perigo do sectarismo que gera intolerância e intransigência. A conversão de Saulo é mais um manifesto da liberdade de Deus e da universalidade de sua mensagem. Ele age quando e como quiser para o bem de todas as gentes, sem nenhuma distinção.
Mais uma vez, o Espírito entra em ação. Desta vez é para derrubar a desconfiança e os preconceitos de Ananias e da comunidade que representa. Deus já fez a sua opção. Escolheu Saulo para Si mesmo para levar Seu nome a tod@s. Não será fácil. Ele também terá que lidar com a perseguição. Sentirá na própria pele o sofrimento que o mundo inflige a quantos se põem ao serviço do Evangelho.
Ananias aceita o desafio. Ele cuida de Saulo, que deixa de ser um inimigo e se torna um irmão. É comovente a imagem da comunidade que acolhe e cuida de quem, até pouco tempo atrás, a perseguia.
Na “Via de Damasco” caem por terra as expectativas dos “zelosos defensores” de Deus. Acontece um indiscutível posicionamento contra a intolerância religiosa, sobretudo quando, sob a aparente defesa dos “direitos” de Deus se esconde um perverso plano de manipulá-lo e usá-lo para defender e proteger seus próprios interesses. Quem defende e promove a violência, mesmo se for supostamente em defesa dos “valores religiosos”, depõe contra Deus. Ele nunca se servirá do ódio e da intolerância para se defender e impor sua vontade. Já não aguenta mais quem vai à Igreja para “servi-lo”, “fortemente armado” física e ideologicamente e passando por cima da dignidade de seus filhos/as. “Ó Deus – rezava Madeleine Dedrêl – acho que estás farto de cristãos que te servem com a atitude de miliciano, que falam de ti com ares de professores e que te amam como se ama num casamento já desgastado. No dia em que você tinha um pouco de desejo por outra coisa, você inventou são Francisco de Assis e fez dele seu cantor favorito. Vamos também nós inventar algo para serem pessoas felizes que dançam suas vidas com você” (Madeleine Delbrel).
Deus não quer setas aquarteladas em suas arrogantes convicções, mas comunidades de portas abertas, prontas a acolher e cuidar de todas as pessoas que chegam. Ananias acolhe Saulo, lhe Impõe as mãos e lhe transmite o Espírito de Jesus de Nazaré. Nesse exato momento, as escamas caem dos seus olhos. “Acho que as escamas de Saulo eram suas supostas perfeições, sua ideologia religiosa, sua intransigência e intolerância” (Silvano Fausti). Então ele recupera a visão e é batizado. A partir deste momento, torna-se o apóstolo Paulo. Depois de alguns dias, ele já está falando de Jesus. Já não consegue conter o desejo de contar o que lhe aconteceu.
Deus converte Saulo e o envolve no caminho de Jesus. Ananias, por sua vez, é convertido de sua desconfiança e se deixa envolver como companheiro nesta nova jornada que Saulo está prestes a empreender. Destas conversões nasce Paulo, apóstolo dos gentios, e surge uma nova comunidade cada vez mais empenhada em acolher todos aqueles que, independentemente de suas histórias, têm um desejo louco de conhecer Jesus e de dá-lo a conhecer aos outros.
(Pe. Xavier Paolillo, Missionário Comboniano)