“Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada” (Mt 10,34-11,1)
Todos os partidos políticos e os grupos religiosos da época de Jesus só buscavam dominar. Para conseguir seus objetivos estavam dispostos a qualquer cosa, inclusive ao uso da violência. Para justificar teologicamente esta obsessão pelo poder, não tinham escrúpulos em manipular a religião. A imagem de Messias que eles esperavam era também construída a partir de suas ambições. Aguardavam um Messias forte e poderoso, um rei da descendência de Davi que devolvesse a Israel o domínio sobre todas as nações.
Jesus decepciona estas expectativas. Sua mensagem é sinal de contradição. É boa notícia para os pobres e má notícia para os poderosos e os exploradores de todos os tempos que têm como centro de suas vidas a sede de poder e a ganância. São eles que se armam de espada e provocam a morte de tantos seres humanos. A proposta de Jesus visa acabar com as raízes deste poder, a começar pelo interior das pessoas para chegar às estruturas (Cfr. nota da Bíblia Ave Maria). Trata-se de uma mudança que exige uma profunda e sofrida conversão porque precisa cortar na própria carne. O desmonte da cultura da violência não passa pela repressão aos atos de violência, mas por mudança de paradigma: passar do modelo do dominador que arranca a vida alheia para se afirmar ao estilo de vida do “servo” que doa a vida para os outros.
Esta mudança não é pacífica. A cultura dominante de hoje se estrutura ao redor do desejo de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do/a outro/a, dos povos e dos mercados. Arrancar isso do coração humano exige um grande esforço que implica até entrar em conflito com os/as outros/as, inclusive com as pessoas que fazem parte da nossa família e do círculo das nossas amizades. Este conflito é muito comum hoje em dia. É duro, mas necessário. Não se trata de embarcar numa guerra religiosa e de usar a violência para impor sua própria verdade, mas de dar prioridade ao Reino de Deus e sua Justiça custe o que custar. Para viver a fidelidade ao Evangelho precisa cortar tudo aquilo que o contradiz dentro de nós e ao nosso redor. É nesse sentido que Jesus fala de “espada”. Não há nenhuma possibilidade de abusar deste texto para defender as teses armamentistas. É uma imagem bíblica muito usada para descrever o discernimento provocado pela Palavra de Deus: “A palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do corpo, e das juntas e medulas e discerne os sentimentos e pensamentos do coração. Nenhuma criatura lhe é invisível. Tudo é nu e descoberto aos olhos daquele a quem haveremos de prestar conta” (Hb 4,12-13). Jesus não veio para trazer sossego, mas para tirar a gente do sossego. A paz que Ele nos doa não nos deixa em paz. Sua Palavra não tem o efeito de entorpecer as consciências, mas de balançá-las e acordá-las para a Vida que tem verdadeiramente sentido. Seu Evangelho não é um manual de autoajuda com sugestões para alcançar o próprio bem-estar, mas uma proposta de vida que revoluciona totalmente a maneira de pensar e agir. Cada Seu gesto não é só uma carícia consoladora, mas também uma espada afiada que penetra na carne e corta toda postura que contradiz Seu jeito de ser. Cada Seu discurso não é uma simples exortação, mas a narração de Sua paixão irresistível por Deus e pelo Seu Reino que deve contagiar. Sua estratégia não é aquela da diplomacia, mas do enfrentamento. Ele não se coloca na linha dos “bobos da corte” que vivem à sombra dos poderosos e os bajulam para garantir-se o direito a não serem incomodados, mas assume plenamente a tradição profética afastando definitivamente toda tentativa de domesticação e enquadramento. Ele veio para salvar todo mundo, mas sem descontos, adequações ou promoções. Conversa com todo mundo, mas “não fecha os olhos” nem “fica quieto” para evitar de se fazer inimigos e para salvaguardar a “boa vizinhança”. A vida massacrada lhe provoca indignação. Diante do sofrimento não mede as palavras e os riscos. Fala as coisas com clareza custe o que custar, sobretudo quando está em jogo a vida e a dignidade dos mais pobres. De contra às tentativas de juntar e forçar alianças à custa de renunciar à essência do Evangelho em nome da manutenção de privilégios e de viver quietos”, Ele afirma com clareza que o Seu Evangelho traz divisão: ‘Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão” (Lc 12,51).
“Jesus veio trazer o fogo”. “Eu vim para lançar fogo sobre a terra e como gostaria que já estivesse aceso” (Lc 12,49-53). É um “incendiário”. Conhecemos e exaltamos várias dimensões da Sua personalidade, mas negligenciamos essa. Pouco se fala dela e, quando há alguma referência, logo se joga em cima um balde de água gelada para minimizar os efeitos e não dessossegar quem prefere o “refrigério da alma” à inquietação do espírito profético. Na realidade, este adjetivo aponta um aspecto decisivo de sua identidade. “Sua fidelidade a Deus o leva a juntar a paciência e a impaciência dos profetas. No Evangelho deixa transparecer Seu sofrimento para com quem não consegue se decidir, com quem permanece indiferente e não toma partido” (pe. Franco Barbero). Seu Evangelho é um convite a “incendiar” o mundo com a caridade, a prática da justiça, a solidariedade e o cuidado com a vida. A queimar nele o poder, a ganância, o individualismo e o egoísmo que geram morte. Nós cristãos deveríamos ser os herdeiros desse desejo de Jesus, os portadores e os difusores deste incêndio. Mas precisamos admitir que frequentemente agimos como bombeiros. No lugar de alimentar o fogo da paixão pelo Reino de Deus, preferimos continuar com práticas que nos mantêm distantes dos conflitos, inclusive nos adoperamos para apagar qualquer princípio de incêndio profético que acontece em nossas comunidades para manter uma paz fictícia. Enquanto nós apagamos o fogo do Evangelho, o mundo queima na fogueira do ódio, da violência, da injustiça, da destruição ambiental e da guerra alimentado por aqueles que recusam a proposta de Jesus e aqueles que escolhem o lado da omissão ou dormem sonhos tranquilos nos braços de práticas religiosas alienantes. Se não acordamos agora diante de tanta fogueira acabaremos queimados nela. A paz de Jesus custa caro. O preço é a cruz. O ganho é a Vida do Eterno.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)