
Nascer do Alto, do Espírito, do Amor
“Vós deveis nascer de novo!”, insiste Jesus com Nicodemos, naquele encontro em plena noite que constitui a madrugada de uma nova jornada na vida daquele membro do Sinédrio que já há tempo dava sinais de caducidade. Nascer de novo é nascer do alto, é nascer do Espírito. Se o Espírito é o dinamismo do amor do Pai que é compartilhado entre as pessoas da Trindade e é comunicado a todos nós, nascer do alto e do Espírito significa brotar do amor de Deus. É reconhecer que a nossa origem é o amor de Deus Pai/Mãe. Este amor faz parte de nosso DNA, constitui nossa identidade. Mas é também nossa vocação. Gerados/as do Amor, a nossa única maneira de viver a vida em plenitude é amando como Deus ama. Comovente a referência de João à água: “Em verdade, em verdade te digo, se alguém não nasce da água e do espírito, não pode entrar no Reino de Deus’ (Jo 3,5). Este detalhe nos lembra o momento em que Jesus foi levantado na cruz, quando do lado aberto do Seu corpo transpassado pela lança do soldado romano jorraram sangue e água. É dessa água que nós nascemos. É nessa água que somos batizados. Somos gerados/as de um Deus que sangrou por nós até a última gota de sangue. Nascemos de uma ferida eternamente aberta, “incurável”, fonte inesgotável de amor. Diante disso, o sinal da nossa pertença filial a Deus é a nossa capacidade de sangrar por Ele e pelos/as outros/as. Somos filhos e filhas do Espírito, somos “crias” de um Deus que não se poupa, se entrega, desiste de si mesmo, arrisca a pele para amar até as últimas consequências. É desse Deus que temos origem e é com esse Deus que temos que nos confrontar o tempo todo.
É com esse amor que temos que confrontar a nossa vida pessoal, política, econômica e social.
Precisa que nasça do alto a nossa política. A política que nasce do alto é aquela que promove a vida e a dignidade das pessoas, que busca o bem comum. É a política que não faz sangrar a dignidade do povo com o desvio do dinheiro público, com as reiteradas violações aos direitos humanos, com o abuso de poder, mas é aquela que sangra pela garantia universal dos direitos humanos, que não sossega até que todo mundo tenha pão, terra, teto e trabalho; acaba com as consequências das enchentes; põe fim à intermináveis filas nos postos de saúde; proporciona educação de qualidade para tod@s; não mede esforços para acabar com o extermínio da juventude pobre, negra e de periferia; cuida das minorias; garante os direitos dos povos originários; preserva o ambiente; desarma a população e promove a cultura da paz para dar um basta à “incultura/’ da morte que nos arrasta cada vez mais para o báratro da barbárie..
Precisa que nasça do alto a nossa economia. A economia que nasce do alto é aquela que não sacrifica o ser humano no altar do lucro, não se dobra aos interesses do mercado, não devasta a natureza, não polui as fontes de água…, mas que busca como prioridade a satisfação das necessidades básicas de todos os seres humanos sem comprometer definitivamente os recursos naturais.
Precisa que nasçam do alto nossas relações sociais. A vida social que nasce do alto é aquela que não se dobra ao paradigma do conquistador, do violento, do mentiroso e do depredador, mas pauta as relações humanas no cuidado, respeito, diálogo, integração das diferenças, perdão, compaixão e partilha. A sociedade que nasce do alto é aquela que se compromete a criar uma convivência saudável, onde seja garantido a tod@s, sobretudo a@s mais frágeis, o direito de viver e conviver harmoniosamente, sem correr o risco de perder a vida.
Nascer e viver segundo o Espírito (Rom 8,4), é se tornar homens e mulheres espirituais. Mas cuidado! Isso não tem nada a ver com espiritualistas, desencarnados/as, abstraídos/as das realidades humanas. Os homens e as mulheres espirituais são aqueles/as que vivem segundo o amor misericordioso de Deus, que falam a língua da Caridade, a única que todo mundo entende
Como afirma Pe. Victor Manuel Fernandez, autor do Livro Teologia Espiritual Encarnada, publicado pela Paulus em 2007, o ser humano espiritual é aquele/a que se deixa guiar pelo impulso do amor – a Deus e ao Próximo – que o Espírito Santo lhe infunde. O homem espiritual é aquele/a que, em qualquer instante de sua vida, no privado ou no público, ama como Deus ama. Ao contrário, o ser humano “carnal”, não é só aquele/a que se apega às realidades externas e materiais, mas também e, principalmente, aquele que se encerra em seu egoísmo e contradiz o dinamismo do amor que nos impulsiona a ir ao encontro dos/as outros/as. (1 Cor 3,1-3).
Nascer do Espírito significa que cada ato de nossa vida deve ser “espiritual”, isto é, deve ter o selo de qualidade do Espírito. O que torna um ato espiritual, seja na intimidade da oração pessoal, seja no trabalho pastoral propriamente dito e na militância em defesa da Vida, é o dinamismo do Amor. Eu posso estar recolhido em silêncio para minha oração e meditação, mas não necessariamente estou vivendo um momento de espiritualidade se não houver amor intenso e gratuito. Da mesma forma, posso realizar obras grandiosas, mas se não tiver a caridade tudo o que realizo não tem nenhuma marca espiritual. A vida toda deve ser espiritual, isto é, marcada com o sinal do amor. Nessa linha não são somente os momentos de oração que enriquecem a espiritualidade, mas também o exercício da caridade.
Todos os atos de acolhida, reconciliação, cuidado, amorosidade, solidariedade, serviço, partilha, justiça e paz que nós realizamos no nosso trabalho pastoral, se forem executados na modalidade do amor do Pai, são atos de espiritualidade da mesma grandeza dos momentos de oração, adoração, interiorização e meditação. Cuidado com a condição devidamente sublinhada. “Não é qualquer atividade que santifica, não é qualquer atividade que é expressão e alimento da espiritualidade. Por exemplo, uma ação realizada para obter prestígio, glória pessoal ou para dominar os/as outros/as, para aproveitar-se deles ou somente para sustentar uma boa situação econômica, não é expressão nem alimento de um dinamismo espiritual. É só uma atividade com ‘qualidade espiritual’ que exprime e alimenta a espiritualidade… Para que uma atividade seja verdadeiramente gratificante e vivida com liberdade interior é necessário que seja motivada e impelida interiormente pelo amor a Deus e ao próximo, porque é só assim que essa atividade é real e plenamente espiritualidade”.
(Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)