”Nós temos toneladas de religião, mas não possuímos um pingo de fé”
O Mestre ordena aos seus discípulos que o levem para a outra margem do lago. No final do dia, todo mundo sobe no barco com maior entusiasmo. Parece que está todo mundo embarcando para uma alegre excursão. Na realidade, o convite de Jesus é muito mais exigente. Trata-se da passagem de uma margem para outra, do estilo de vida do mundo para aquele proposto pelo Evangelho, da busca obsessiva do poder ao espírito de serviço, do egoísmo à solidariedade, do individualismo à comunhão fraterna, do ódio ao perdão, da morte à vida, do mundo velho ao novo. Lembro que está valendo uma nova constituição. Jesus, com o Discurso da Montanha, inaugura o Reino, cuja lei está gravada nas Bem-aventuranças. É uma travessia desafiadora para quem se dá conta daquilo que Jesus está pedindo. A primeira dificuldade é deixar a segurança e tranquilidade da própria margem! É duro ter que sair da “zona de conforto” para encarar a insegurança do novo. A sabedoria popular costuma aconselhar a não trocar o conhecido pelo desconhecido. Mas para entrar no novo mundo precisa enfrentar um novo Êxodo. Jesus é o novo Moisés. O lago de Tiberíades lembra o Mar Vermelho que precisa atravessar para abandonar a escravidão e alcançar a liberdade na Terra Prometida. Cuidado a não pular no barco errado e, sobretudo, a não subir no barco com o “seu próprio Jesus”, customizado conforme seus gostos, manipulado a segunda de suas ideologias e controlado à distância para seguir as rotas e alcançar os destinos que nos agradam. Quem embarca no barco do Jesus o acolhe assim como ele é e não conforme os próprios interesses e desejos.
A passagem não é tranquila. Quem acha que vai ter sossego, está equivocado. A vida do cristão é cheia de surpresas nem sempre agradáveis. Tempestades internas e externas se abatem sobre o barco com o risco de afundar. Quem quer fazer a diferença conforme o Evangelho não tem vida fácil. Jesus deixa isso bem claro. E quem espera uma intervenção milagrosa de Jesus para evitar os problemas, fica decepcionado. Jesus nunca prometeu isso. Enquanto tempestade ameaça o barco, Jesus dorme. É esta a impressão que temos no dia a dia. A doença chega de repente e Deus dorme. Não realiza o milagre tão esperado. A guerra volta a ameaçar a sobrevivência da humanidade e Deus dorme. Não faz nada para restabelecer a paz. A violência deixa um rastro de sofrimento e morte. E Deus dorme. Não vinga as vítimas inocentes. A fome mata milhares de crianças. E Deus dorme. Não intervém para garantir o pão de cada dia a todo mundo…. Continua dormindo como se não lhe importasse nada daquilo eu está acontecendo. Desesperados, os discípulos de todos os tempos e de todos os cantos da terra elevam a mesma súplica: ”Senhor, salva-nos, nós perecemos!”. E Ele, no lugar de solucionar os nossos problemas, nos desafia com uma pergunta: “Por que este medo, gente de pouca fé?”. Acordado pelos discípulos, reage de maneira inusitada: “Silêncio! Cala-te”. No lugar de entrar em pânico, como acontece a qualquer um nós quando é acordado em plena emergência, o Mestre restabeleceu a serenidade e a paz através do silêncio. O texto diz que este grito de Jesus foi dirigido primeiramente ao vento e ao mar para que seus discípulos entendessem uma vez por toda que Ele não era um simples profeta, mas é Deus, pois é o único capaz de dominar o mar (Sl 106,23-32). Mas a ordem de Jesus nos ensina outra coisa. No meio das tempestades da vida, não vale o desespero, mas a fé em Deus. A “saída de emergência” é o silêncio da oração, do abandono e da confiança no Senhor. Não se trata de cruzar os braços e aguardar que Deus solucione os nossos problemas, mas de crer na Sua presença ativa ao nosso lado garantindo-nos a certeza da vitória final: o mundo novo vai acontecer. Portanto, Jesus não acaba com a tempestade, mas com o medo dela. Nos concede a graça da ousadia do Evangelho.
Lembremo-nos das palavras do Senhor em Isaías 30, 15: “É na conversão e na calma que está a vossa salvação; é no repouso e na confiança que reside a vossa força”. Para o discípulo de Jesus de Nazaré, o contrário do medo não é a coragem, mas a fé, Esta não acontece por toque de mágica, mas aprendendo a confiar em Deus dia após dia, reconhecendo-O e acolhendo-O a bordo do próprio barco assim como Ele é. Às vezes temos que reconhecer que, como dizia pe. Balducci, “temos toneladas de religião, mas não possuímos um pingo de fé”.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)