
O árduo desafio do apostolado das fronteiras sociais
O alvorecer do século XX trouxe um duro embate para a Igreja e para o Mundo. No sistema capitalista triunfante em que o princípio da geração da riqueza assentado na objetificação não só da produção mas do próprio trabalhador, das relações e do sobretrabalho do mesmo que o salário não remunera e que os direitos sociais não haviam ainda chegado, trouxe uma duríssima questão ética e social para todos os cristãos. A “Rerum Novarum” foi o documento do Papado de Leão XIII pensado para se buscar uma regulação das relações entre empregadores e empregados, numa perspectiva de compromisso social que evitasse tanto o avanço do empobrecimento crescente e da miséria nas grandes cidades, como também convulsões e crises sociais.
Mas esse documento e orientação não foram suficientes. A modernidade planetária foi construída em torno do surgimento dos bairros periféricos habitados por pessoas em condições de vulnerabilidade. Junto a isso se somou a situação dos trabalhadores remunerados de uma forma insuficiente para a sua plena sobrevivência, que, em pleno alvorecer do século XX, tiveram de envolver toda a família na atividade produtiva, em condições muitas vezes análogas à escravidão.
Essa forma de se vivenciar a ordem social treinou nosso olhar para criarmos zonas de invisibilidade, que colocavam nas margens da nossa atenção os descartados pela lógica de uma produção que desumanizava o trabalhador. Isso vai chegar no mundo rural, quando aqueles que não encontravam formas de sobrevivência e dignidade no campo se tornaram migrantes internos aos países e também emigrantes para outros continentes, em busca de terra e trabalho.
Os bolsões de miséria e de pessoas sem trabalho, oportunidades e inserção social se aglomeraram nos cincos continentes. Em países com o passado escravista, como o nosso, essa massa de pessoas se associou às multidões de trabalhadores afrodescendentes e indígenas sem emprego e sem acesso à Terra, acumulando as piores visões e adjetivos. O cúmulo da condenação aos mesmos serão as leis de vadiagem que proliferaram não só aqui, mas em todo mundo. Os descartados passam a ser os indesejáveis e criminosos pela condição em que se encontram. A culpa e a perigosidade são associadas às pessoas que se encontram nessas condições aviltantes, e no caso do Brasil, a cor foi constantemente associada à pobreza e à violência.
Isso tudo construiu uma sólida forma de se compreender a normalidade, baseada no princípio de que só se vê e se reconhece aquilo que o próprio indivíduo considerado produtivo e próspero assim considerar. Houve o aprendizado coletivo de se ignorar quem passa fome e de se viver e comemorar momentos e dar demonstrações de afetos como se as pessoas na condição de “indesejáveis,” de fato, não existissem.
Aqueles que se identificaram com a perspectiva de cruzarem esses limites e reconhecerem a humanidade que existe nas margens, passaram a ser vistos como inimigos da ordem estabelecida. Segundo Peter Gay, no seu livro “O cultivo do ódio” (Companhia das Letras, 1995), o mundo contemporâneo construiu a idéia do “inimigo conveniente”. Este é o ser que passa a encarnar todas as contradições e ser o somatório de todos os medos e da ameaça ao que foi estabelecido.
Infelizmente, a humanidade nos séculos XX e especialmente no século XXI afinou seu sentido de criação dessa inimizade conveniente atribuindo-a àqueles que , “indo contra a maré”, desejam incluir as pessoas à margem. Tal ação convida necessariamente a um novo pacto político, mais democrático e inclusivo.
Assistimos hoje aos violentos ataques que o Padre Júlio Renato Lancelotti vem sofrendo, sendo claramente o “ inimigo conveniente” construído e retroalimentado pela cultura do ódio que só se sustenta se é eficaz na produção de oponentes. E sair desse lugar da oposição conveniente é um esforço que necessita de um coletivo de pessoas, associações que se agreguem a esse ser para que se dilua dele, toda carga de ódio que lhe é direcionada.
Essa é a estratégia que leva, necessariamente, também em outros espaços e situações, a um forte associativismo para a superação de identificações de ódio conveniente que são atribuídas às religiões de matriz africana, aos movimentos anti-racistas, por exemplo.
Aqui, infelizmente, poderiam ser destacados inúmeros “inimigos convenientes”. E por mais que se digam, que se enfatizem e que se provem as injustiças atribuídas a pessoas como o Padre Júlio Lancelotti e as instituições como os Terreiros das religiões afro brasileiras, a dualidade assentada no ódio tem uma poderosa força política mobilizadora de muitas pessoas. E o ódio segue arrastando, alavancando lideranças e projetos políticos que defendem claramente um mundo que cada vez mais aumenta margens, para poder sobreviver num centro de prosperidade que se afunila cada vez mais. É doentio, mas eficaz.
Cercar Padre Júlio com a nossa presença, questionarmos o cultivo do ódio, chamar a atenção para a sua condição e situação, são formas de desimpregná-lo e desonerá-lo desse lugar que ele nunca teria escolhido: ser esse tal “inimigo conveniente”.
Por fim, ressalto que é nessa estratégia da rotulação pelo ódio, que também atravessa o planeta, que nos faz assistir diariamente na TV o genocídio palestino e, ao mesmo tempo, nos leva a ignorar totalmente massacres e genocídios que ocorrem no Congo, Sudão do Sul, em Cabo Delgado (Moçambique) e em tantos outros lugares, porque “não fazem parte de nossas vidas” ou porque não são “enxergados” por nós. Só existe aquilo que se quer ver ou que fura esses bloqueios através das redes de solidariedade que humanizam as vítimas e trazem seus rostos e histórias.
Olhemos para o Padre Júlio Lancelotti, fiquemos incomodados com essa cruel e mortificante perseguição que ele sofre. Ele traz para o coração da cidade (e do mundo), as pessoas descartadas. Lembra que somos todos da mesma natureza, a humana. E quanto ódio isso provoca.
Abarquemos e incluamos no nosso olhar a humanidade que existe na Palestina, nas nossas Periferias, nas guerras em diferentes países na África e sejamos corajosos para deixarmos curar os nossos olhos, para que enxerguemos o que não se quer visto, porque disso depende a nossa própria existência enquanto pessoas. O Amor é realmente aquilo que nos livrará da cultura do ódio, porque aproxima, equaliza, dignifica e, sobretudo, nos compromete. Amar exige coragem mas é a única forma de nos reencontrarmos e de transformarmos a nossa relação com o sofrido Planeta Terra.
Patricia Teixeira Santos
Professora da disciplina de História da África da Universidade Federal de São Paulo
Foto: Sâmia Bomfim (Wikimedia)