O Banquete da Vida
Promiscuidade, adultério, bebedeira, comida esbanjada, medo da verdade, desejo de vingança, dança lúgubre e desejo macabro são alguns dos ingredientes do banquete que acontece no palácio de Herodes. Não é festa, mas orgia. A anfitriã é a morte. É ela que ordena o prato especial da noite: a cabeça de João Batista. Os evangelistas não retratam a reação dos comensais. Não sei se, diante daquela bandeja, ficaram em silêncio ou se bateram palmas, se acabaram em gargalhadas e deram um suspiro de alívio por ter calado a voz do profeta. O que é certo é que não houve nenhuma tentativa de evitar a tragédia. Herodes e comensais não suportam a profecia, sobretudo quando questiona suas perversões. Quem atende ao convite da morte e se entrega às suas ferozes garras, não sente nenhuma compaixão. Desiste de ser gente. O bacanal que acontece no palácio de Herodes é exatamente o oposto do banquete do Reino que Jesus propõe onde é a Vida do Eterno o principal prato da festa. Herodes e companhia parecem ter vencido. A morte violenta de João Batista é um claro recado para Jesus. É bom para ele sumir do mapa se não quiser acabar do mesmo jeito. Mas Jesus não desiste. Mesmo sofrido pelo trágico acontecimento e desejoso de se retirar num lugar deserto para permanecer sozinho, não consegue ficar indiferente à numerosa multidão que o segue a pé. Move-se de compaixão por ela e cura os doentes. Não tem coragem de abandonar o seu povo nas garras de Herodes e seus comensais. A condição desumana das vítimas da cultura da morte patrocinada por quem rejeita o projeto de Deus estimula sua missão. Jesus é a mão estendida por Deus para nos salvar do risco de nos afogarmos em projetos que nada têm a ver com o sonho de Deus. Na origem de sua missão, portanto, não há um plano para expandir o poder de Deus, mas a compaixão do Pai para conosco. A compaixão é a razão fundante da história da salvação. É o essencial que diferencia o projeto de Jesus daquele de Herodes. Está à origem da vocação de Moisés: “Observei a miséria do meu povo… Ouvi o seu grito… Conheço os seus sofrimentos… Desci para libertá-lo”. Os profetas fazem referência a ela o tempo todo para explicar as intervenções de Deus: “Como posso te abandonar e entregar-se nas mãos de outros, ó Israel? Como deixaria de te proteger ou te trataria como tratei Admá? Como agiria contigo do mesmo modo como lidei com Zeboim? Eis que o meu coração está comovido, toda a minha compaixão está desperta e voltada para ti!” (Os 11,8). A fome do povo toca o coração de Jesus. É um sentimento que precede o mesmo pedido de ajuda e que, infelizmente, se choca com a “dureza de coração” dos discípulos: “Esse lugar é deserto e a hora é acançada. Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia”. No entanto, Deus não desiste. Dobra-se sobre o sofrimento do ser humano, alcançando-o onde ele está. Ele o ajuda “multiplicando o pão”, isto é, doando o que é mais comum, mas também o mais essencial para a vida humana. E neste gesto procura envolver os seus apóstolos: “Dai-lhe vós mesmo de comer!”. Ele supera sua resistência inicial, tornando-os instrumentos de sua ternura. Aqueles/as que buscam o Deus vivo não podem fechar os olhos diante desta dura realidade. Quem o procura o encontra nos descartados/as, nos famintos/as, nos deserdados/as. O tamanho da adesão a Ele é diretamente proporcional à compaixão por aqueles que vivem na miséria e à margem da sociedade. Quem se alimenta do Corpo de Cristo e de Sua Palavra não pode deixar de se comprometer com a defesa da vida. Nós nos alimentamos de Deus alimentando também aqueles que têm fome de pão. “Uma palavra que não leve a dar também pão ao faminto e vestir o nu não é Palavra de Deus… O pão da Eucaristia que congrega na mesma mesa os irmãos e irmãs não pode se separar do pão devido com justiça ao pobre e necessitado. Um pão conduz ao outro, e ambos fazem da Eucaristia o alimento de vida eterna que se está fazendo já, aqui e agora, pesente entre nós com a vinda do Reino de Deus” (Bíblia Ave Maria).
Jesus mostra-nos como fazê-lo através do gesto da partilha dos pães e dos peixes, tão decisivo que é citado por todos os evangelistas por bem seis vezes. É um detalhe que aponta a gravidade do problema e a urgência de superá-lo. No Evangelho de Marcos o relato da multiplicação dos pães e dos peixes aparece duas vezes: a primeira acontece em Israel e a segunda em terra pagã. A insistência não é casual. Aponta a necessidade e urgência de anunciar o Evangelho em todo canto. A fome de Deus e de pão material tem que ser alimentada em qualquer região do mundo, independentemente da cor da pele, cultura, opção política e religião.
Nós gostaríamos que fosse Ele a realizar o milagre fazendo chover maná do céu ou multiplicando os pães, mas passa a responsabilidade para nós, ensinando-nos que a fome só pode desaparecer do mundo graças à partilha.
Isso não acontece por toque de mágica, mas é o resultado de uma longa jornada de conversão. O deserto, escolhido como cenário para esta lição, recorda a experiência do Êxodo. Jesus deseja envolver-nos num novo Êxodo. Ele quer nos tirar do mundo marcados por injustiças e iniquidades rumo a uma terra nova onde todos/as possamos viver como filhos e filhas de Deus, demonstrando que, onde há compaixão e solidariedade, há pão de sobra para todos/as.
O mundo que habitamos está corrompido pelo individualismo, indiferença, hedonismo, ganância desenfreada e consumismo. Estas atitudes geram desigualdade, miséria, fome, violência e degradação ambiental. Jesus quer tirar-nos deste “inferno” e levar-nos de volta ao “jardim” em que Deus nos colocou e do qual nunca deveríamos ter saído.
O embate entre estes mundos é muito evidente no Evangelho de Mateus, onde o primeiro relato do banquete de Jesus é precedido pelo que acontece no palácio de Herodes (Mt 14,1321). É um contraste dramático que continua até hoje e denuncia as injustiças que ainda minam a nossa sociedade. No mundo governado por “Herodes” uns vivem às custas do derramamento do sangue da maioria das pessoas. Ainda mais forte é a denúncia de Lucas, quando nos conta a parábola do rico e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31). É o retrato daqueles que desperdiçam, por um lado, e daqueles que são forçados a sobreviver com as sobras que caem no lixo.
O Êxodo proposto por Jesus é um caminho que quer levar a humanidade de volta ao sonho original do Pai. Deus não fez o mundo assim. Ele o criou e o colocou nas mãos de todos/as. Ele nos pediu para cuidar da criação para que todos/as tivessem acesso ao que é necessário para viver com dignidade. De acordo com os seus planos, o mundo deve ser uma casa comum, onde haja espaço para todos/as, em que só possa haver um banquete global, uma mesa da qual ninguém deve ser excluído/a ou discriminado/a. Quem se senta à mesa da Eucaristia não tem como prescindir dessa meta.
(Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)