O Escândalo da Misericórdia
O paradoxo da história de Zaqueu (Lc 19,1-10) não é a sua conversão, mas a murmuração da multidão. Lucas faz questão de sublinhar que todos se incomodam com a postura de Jesus. Os Seus seguidores não toleram que o Filho de Deus, do qual esperam que “faça justiça”, tire o olhar dos seus “méritos” para dirigi-lo a um ladrão, corrupto e impuro, baixo não só no tamanho físico, mas também na postura moral, digno de ser linchado publicamente, apodrecer na cadeia e ser condenado à morte eterna. E como se não bastasse a indignação por frequentar a casa de Zaqueu, a multidão fica horrorizada em ver Jesus sentado à mesa comungando com ele como uma pessoa de casa, um membro da família. É imoral que faça isso sem sequer exigir que o “pecador” confesse antecipadamente seus pecados, se arrependa e pague pelo mal que fez.
É o escândalo da misericórdia incondicionada, que chega gratuitamente, é doada sem impor condições, surpreende o pecador, o previne e antecipa todo e qualquer propósito de mudança. É a revolta de quem não aceita um Deus que anda por “caminhos errados”, enrola pelas estradas da perdição para pôr-se ao alcance de todo mundo sem preconceitos e exclusões.
A estratégia de Jesus para com o pecador distancia-se da maneira de pensar da multidão. Ele percebe sua presença. Aproxima-se dele sem medo de contaminar-se. Destina-lhe um atendimento personalizado. Olha para ele não de cima para baixo, mas de baixo para cima com humildade e respeito. “Odeia” o pecado, mas ainda confia no “pecador’ e na sua capacidade de dar a volta por cima. Não faz sermões nem dá bronca. Não julga nem condena. Não o chama pelo artigo do código penal que infringiu, pelo apelativo infamante, pelo ofício vergonhoso que exerce ou pelo número do processo, mas pelo nome. Não exige que Zaqueu entre no seu mundo como fazem religiosos fanáticos que logo querem angariar prosélitos para suas igrejas, mas é Ele que entra no mundo de Zaqueu. Seu olhar não aponta sobre as coisas erradas que fez. Para isso já basta a opinião pública. Seus olhos vão além da sujeira da aparência à procura do melhor que ainda sobra para alavancar uma nova história.
A reação de Zaqueu não se faz esperar. Chega sem ser solicitada. Ele faz muito mais daquilo que a Lei lhe impõe e o Mestre lhe pede. Lembra de suas vítimas e busca reparar o dano que lhes causou. Doa metade de seus bens aos pobres e devolve quatro vezes a mais o que roubou. À origem dessa sua conversão tem a misericórdia inesperada de Deus. É o amor a força que detona a transformação. Jesus não aponta o dedo para condenar, mas abre os braços para acolher. É este abraço a mola propulsora da mudança.
É nessa prática de Jesus de Nazaré que se inspiram as pessoas comprometidas com os serviços pastorais destinados às pessoas encarceradas, aos/às dependentes químicos, às mulheres marginalizadas, aos “menores” e à população de rua. Mas nem sempre gozam da compreensão e do apoio sociedade. Quem abraça estas causas passa pela mesma marginalização e criminalização das pessoas que atende. Essa incompreensão machuca, sobretudo quando acontece em comunidades cristãs. As pastorais que entram na “casa dos zaqueus” dos nossos tempos nem sempre encontram casa em nossas igrejas. Frequentemente são deixadas à margem da vida eclesial. É o escândalo da misericórdia que ainda desafia nossa fé. Nossas igrejas estão cheias de imagens que retratam o Coração de Jesus e o Bom Pastor, mas resistimos a aceitar que Sua prioridade missionária é deixar para trás os “bons” para ir à procura da “ovelha perdida”. É uma busca ativada pelo próprio coração de Jesus, independentemente da reação do/a destinatário/a. Seu maior sonho é ver as multidões daqueles que o cultuam saírem às ruas com Ele à procura de quem está jogando aos “porcos” a pérola da própria vida, no lugar de murmurar contra Sua misericórdia e de aplicar sentenças condenatórias sem dar margem à esperança de uma nova vida. Fazer isso é uma consequência obrigatória e necessária de Seu coração misericordioso que justamente contemplamos e veneramos. “Hoje DEVO ficar na tua casa”, diz Jesus a Zaqueu. O verbo “dever” sublinha que Jesus não pode fazer a menos de reconstruir a comunhão com as pessoas que tomam distância d’Ele apequenando a própria vida naquilo que não presta. Obrigado a todas as pessoas que, a exemplo do Bom Pastor, sentem a “obrigação” de entrar no mundo da marginalização e evangelizam através do exercício da misericórdia. Bem-aventurados vocês misericordiosos/as porque, como promete Jesus no discurso da Montanha, alcançarão misericórdia.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)