
O Evangelho da Cananeia
O sofrimento não tem barreiras nem distinções. Afeta todo mundo. Sofrem o homem e a mulher; o branco, o preto, o amarelo e o vermelho; os pequenos e os grandes; os jovens e os velhos; os santos e os pecadores; os pobres e os ricos; os pagãos e os cristãos; os que tem fé e os que não creem em nada; os que andam por caminhos certos e ou que se perdem por desvios errados. Se todo mundo sofre, também a compaixão deve ser universal. É para todo mundo e deve ser ainda maior para com aquelas pessoas que não contam com o apoio de ninguém. Foi isso que Jesus nos revelou. Deus se compadece de todos/as indistintamente. No coração dele tem lugar para todo mundo. Cada sua palavra, cada seu gesto e cada seu encontro esbanjam ternura e cuidado com as pessoas, independentemente de sua condição. Uma das oportunidades desta grande revelação é o encontro com uma mulher. Mateus diz que é cananeia (Mt 15,21-28). Marcos faz questão de dizer que é pagã, portanto, segundo a mentalidade religiosa judaica, uma mulher excluída e impura. O cenário situa-se na área de Tiro e Sidônia, terra estrangeira. Ela vai até Jesus e interrompe seu caminho gritando: “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim: minha filha está cruelmente atormentada por um demônio”. É uma parada decisiva na vida de Jesus e, sobretudo, marca uma grande reviravolta na atividade missionária da comunidade cristã. Amplia os horizontes da missão até os últimos confins da terra. É deste encontro que começam a ruir os muros, as barreiras e todas as estruturas que aprofundam as discriminações e fortalecem as divisões. O Evangelho é a Boa Notícia para todos/as.
A mulher apresenta sua dor de mãe. Segundo Mateus, o faz como se fosse uma liturgia que começa com o ato penitencial: “Kyrie Eleison!”, “Senhor, tem compaixão de mim”. A filha vive atormentada por um demônio. Ela não aguenta mais vê-la sofrer daquele jeito. Implora libertação. O problema é que não pertence ao povo de Israel. A reação de Jesus surpreende negativamente. Aos apóstolos que lhe pedem de mandá-la embora, responde com um comentário racista: “Eu fui enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel”. À mulher desesperada que insiste em lhe pedir socorro, reage com uma afirmação preconceituosa: “Deixa primeiro que os filhos fiquem saciados, porque não está certo tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos”. À primeira vista, parece maltratar a mulher e a filha, mesmo se adoça o xingamento usando o diminuitivo: cachorrinhas. Engana-se quem pensa assim. Na realidade ele lança uma provocação para dar uma lição ao povo eleito e, sobretudo às comunidades cristãs que insistem em cultivar preconceitos e fazer discriminações. Sabe que aquela mulher tem ousadia suficiente para dar a resposta certa. De fato, é isso que acontece. A mulher aceita o argumento de Jesus. Ninguém melhor de que uma mãe sabe que nunca deve tirar o pão da boca dos filhos. Mãe morre de fome, se for necessário, para que seus filhos tenham o necessário para viver. De jeito nenhum deseja que Jesus tire o “pão da vida” da boca do povo de Israel. Mãe de verdade é sempre solidária. O que quer para seus filhos e filhas deseja também para os filhos e filhas das outras. Ela aposta na generosidade dos comensais para que haja pão de sobra para todos/as. Foi isso que aconteceu na multiplicação dos pães e dos peixes. Todos comeram à vontade e ainda sobraram doze cestos cheios de pão. Quando o coração é generoso, tem pão, amor e compaixão suficiente em todas as mesas. A partilha é um dos sinais mais contundentes da chegada do Reino de Deus. A novidade do Evangelho de hoje é a universalidade do acesso à mesa do Reino: a festa é para todos/as.
A cananeia foi “atrevida”. Ousou encarar os preconceitos e fazer a diferença. Ela enfrentou a distância imposta pela “lei do impuro” e se aproximou. Quebrou o muro da separação e reivindicou o direito de se achegar a Deus e apresentar sua súplica. Para a religião oficial “Deus” era só para os “íntimos que mereciam”. O acesso a Ele estava reservado somente aos “justos”. A salvação era um privilégio exclusivo para o povo eleito. A mulher reagiu. Gritou ainda mais alto. A dor que brotava com força de suas entranhas maternas “converteu” Jesus e, sobretudo seus discípulos arrastando-os para fora dos restritos limites dos privilégios do “povo eleito” e os levou a escancarar seu coração para acolher as dores de qualquer ser humano, independentemente de sua origem, orientação, religião, opção política e condição econômica.
Por incrível que pareça, a mulher cananeia, “estrangeira” e “pagã”, deu uma lição de Evangelho para todo mundo: o Reino de Deus não pode ser como esse mundo. No coração de Deus não pode haver distinção entre “filhinhos/as” e “cachorros/as”. Os/as discípulos/as de Jesus não podem fazer discriminações e simplesmente excluir quem não está nos conformes.
A cananeia, mesmo distante das instituições religiosas e suas doutrinas, demonstrou que o dom da fé não conhece fronteiras raciais, culturais, econômicas e sociais. Ao atender o seu pedido e ao elogiar a sua fé, Jesus aponta a nova comunidade acolhedora e transbordante de compaixão, que veio inaugurar como alternativa para todos os desvios sectários e fanáticos do seu tempo e de nosso tempo.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)