O indígena na cidade de Manaus: vida, experiência e reflexão
As populações indígenas que vivem nsa cidades enfrentam situações bem próprias. A Constiutição federal estabelece os direitos dos indígenas, mas na realidade os mecanismos que garantem tais direitos, na prática são restritos às aldeias. Fica assim um vazio institucional que deixa desamparada uma grande parte dos indígenas brasileiros. A seguir você pode entender melhor esta situação.
Jovens indígenas fazem selfie, no Fórum Social Mundial em Salvador-BA
O Documento Final do Sínodo para a Amazônia afirma: ‘a forte tendência da humanidade e de concentrar-se nas cidades, migrar do menor para o maior, também ocorre na Amazônia’ (No. 34). Muitos povos indígenas, ribeirinhos, caboclos, mestiços, quilombolas, afrodescendentes, camponeses, deixam o campo para vir morar na cidade de Manaus (AM). Com aquela ideia de procurar uma vida melhor onde haja mais oportunidades do que o interior.
Segundo a cartografia elaborada pela Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), em 2015, foram identificadas 34 etnias em 51 bairros de Manaus, sendo elas: Munduruku, Tikuna, Sateré-Mawé, Desana, Tukano, Miranha, Kaixana, Baré, Kokama, Apurinã, Tuyuka, Piratapuya, Kamaiura, Kambeba, Mura, Maraguá, Baniwa, Macuxi, Wanano, Tariano, Bará, Arara [do Aripuanã], Karapãna, Barasana, Anambé, Deni, Kanamari, Katukina, Kubeo, Kulina, Marubo, Paumari, Arara do Pará e Manchineri. No que se refere à língua, os dados indicam 19 línguas faladas – Munduruku, Tikuna, Mawé, Mura, Desano, Tukano, Baré, Língua geral amazônica (Nhengatu), Piratapuya, Wanano, Apurinã, Tariano, Kaixana, Kokama, Karapãna, Tuyuka, Barasana, Baniwa e Kambeba – em 41 bairros.
O indígena que chega à cidade geralmente se vê obrigado a ir para a periferia, visto que no centro já não há espaço para morar. Isto acontece porque não se conta com uma política habitacional adequada.
Habitualmente os indígenas são ‘empurrados’ para a periferia (Salvado-BA)
Nos casos em que o individuo não tem algum parente que o acolha, deve acomodar-se em lugares de risco, como as margens dos igarapés, onde há frequentes enchentes. Outros ocupam terrenos abandonados pelos donos por não poderem pagar os impostos acumulados; ainda, há aqueles que decidem entrar em propriedades privadas e acabam sendo expulsos pela polícia depois de uma reintegração de posse. Outros ocupam áreas de reserva florestal que são protegidas pelas leis federais.
Outra questão importante a considerar é que, na cidade, os indígenas estão expostos a delinquência, desemprego, descriminação, suicídio, narcotráfico e outras situações.
Um dos grandes problemas do imigrante na cidade é que ele vira um individuo invisível, anônimo para o Estado. Porque atualmente as políticas públicas estão voltadas para a população indígena do interior, das aldeias, e não para o indígena urbano. Se um indígena precisar de um atendimento médico, por exemplo, será orientado a ir à sua respectiva aldeia para ser tratado.
Os indígenas em contexto urbano sofrem preconceito institucional e enfrentam entraves para que lhes sejam efetivados os direitos sociais. Preconceito ainda é entrave na realidade indígena. “Há ainda forte preconceito e discriminação. E os indígenas que moram nas cidades são realmente os que enfrentam a situação assim no dia a dia, constantemente”, conta o presidente da Organização dos Índios da Cidade, de Boa Vista, Eliandro Pedro de Sousa, do povo Wapixana.
O indígena urbano, apesar de passar por tanta dificuldade, tem mecanismos sociais que lhe permitem manter os laços sistemáticos com a aldeia e a afirmação de sua identidade étnica na cidade. Consegue preservar aspectos do modo de vida apreendido na aldeia, como o uso da língua e dos rituais, a socialização dos filhos com as lendas e danças, o artesanato, os hábitos alimentares. Recebe os parentes vindos para a cidade e mantém contato sistemático com aqueles que ainda moram na aldeia. Todos estes são indicadores do pertencimento étnico.
Um aspecto importante são as organizações indígenas na cidade, como as associações, que funcionam como espaço de articulação política das famílias e etnias, de práticas comuns materiais e simbólicas, de lutas pela identidade, e se constituem como interlocutoras dos órgãos governamentais. Este convívio é possibilitado por reuniões sistemáticas de cada etnia, nas festividades das associações, onde os indígenas convidam os parentes para compartilharem dos rituais e demais atividades.
As associações indígenas são fundamentais para sua vida e cultura
As associações constituem-se também em um espaço importante na produção do artesanato. Porque, apesar de buscar melhores condições de vida na cidade, a maioria dos indígenas vive em situação de pobreza, tem dificuldade de conseguir emprego; sua principal renda vem do artesanato. O trabalho realizado resulta em bolsas, pulseiras, colares, brincos, redes, porta-joias, tapetes, cestinhas e gargantilhas, feitos de tucumã, jarina, inajá, palha, cipó, açaí, dentre outras matérias-primas.
Os povos indígenas da cidade têm enfrentado grandes problemas, como a falta de ações e programas de saúde específicos e diferenciados, tanto por parte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), sob a responsabilidade do governo federal, quanto pelos outros órgãos do Sistema Único de Saúde, ligado ao estado e municípios.
Existe uma considerável população indígena na cidade, aos quais a Constituição Federal garante um tratamento diferenciado, no artigo 231, que reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
A lei de criação do SASISUS, Lei N°9.836 de 23 de setembro de 1999 (Lei Arouca), estabelece que as ações de saúde voltadas aos Povos Indígenas deverão obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades culturais indígenas, se pautando por uma abordagem diferenciada e integral e tendo o SUS como retaguarda e referência, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização dos serviços para propiciar integração e o atendimento necessário, sem discriminações.
Seus objetivos num atendimento diferenciado:
• Melhorar o acesso das populações indígenas ao serviço especializado;
• Adequar o ambiente hospitalar de acordo com as especificidades culturais;
• Ajustar as dietas hospitalares, considerando os hábitos alimentares de cada etnia;
• Promover o acolhimento e a humanização das práticas e processos de trabalho dos profissionais em relação aos indígenas e demais usuários do SUS, considerando a vulnerabilidade sociocultural e epidemiológica de alguns grupos;
• Estabelecer fluxos de comunicação entre o serviço especializado e a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena, por meio das Casas de Saúde Indígena (CASAI);
• Qualificar os profissionais dos estabelecimentos que prestam assistência aos povos indígenas quanto a temas como a interculturalidade.
Porém, na prática esses objetivos antes mencionados, não se dão concretamente, não estão sendo realizados pelos governos, sobretudo municipal e estadual. O morador da cidade não tem aquele atendimento ao qual tem direito, do mesmo modo que recebe o indígena aldeado.
Mãe indígena com seu bebé, espera assistência
Em 2010, também foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) como forma de garantir o acesso à saúde a esses povos a partir dos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS), aplicados ao contexto da interculturalidade, que visa abordar os problemas mais comuns na comunidade, oferecendo serviços de prevenção, cura e reabilitação, para maximizar a saúde e o bem-estar, levando-se em conta os diferentes entendimentos de saúde e bem-estar dos povos originários.
Na cidade, o indígena também vê a necessidade de uma educação adequada e diferenciada. A Constituição Federal assegurou aos povos indígenas o direito de manterem sua cultura, língua e tradição também nos processos de aprendizagem da educação escolar. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB) reconheceu o direito dos índios a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária.
Nas associações (antes mencionadas), criadas pelos próprios povos indígenas na cidade, funcionam as chamadas “escolas indígenas”, denominadas por eles de “centros culturais”. Nelas, as crianças aprendem a língua materna, canto, dança, hábitos alimentares, rituais, pinturas e artesanato, em horário diferente da escola do ensino regular. É o espaço de ressocialização das crianças e jovens nos modos de vida indígena e a reafirmação dos aprendizados futuros da aldeia na cidade.
Carlos Arrieta, comboniano em Manaus
Fotos: Sem Fronteiras/Arquivo Comboniano