O legado do Missionário Comboniano Pe. Ezequiel Ramin
Era o dia 24 de julho de 1985 quando, regressando de uma missão, o Pe. Ezequiel sofreu uma emboscada e foi brutalmente assassinado. No local, onde a terra amparou o corpo e se fez vida com o sangue derramado, foi construída uma capela. Para manter viva a memória, romeiros de vários lugares para lá se dirigem todos os anos.
O padre continua sendo lembrado e celebrado 38 anos após o martírio. Nas recordações, muitas coisas, reais e imaginárias, se entrelaçam e misturam, propiciando narrativas múltiplas e, às vezes, contraditórias.
Para decifrar e melhor compreender o legado do Pe. Ezequiel, destacamos duas ‘questões’ que caracterizam o nosso tempo.
1. Há interrogações que nos acompanham a vida inteira. Geralmente estão associadas ao sentido da existência humana. As respostas, por sofisticadas que sejam, sempre se apresentam insatisfatórias.
2. Na contramão do exposto, outra tendência se impõe: a cultura do descarte. O que realmente importa é o presente, o agora. O imperativo, então, é estar conectado, possuir a tecnologia de ponta. O tsunami é tão avassalador que acaba empurrando o “ontem” para a insignificância do passado.
Ressignificar o sentido da “vida e morte” do Pe. Ezequiel neste contexto, não é fácil! A ambiguidade permeia nossos corpos e mentes e contamina nossas interpretações.
Será que não procuramos em Ezequiel o sentido das nossas interrogações e contradições? Será que sua coerência e fidelidade até o martírio não jogam uma luz perturbadora sobre nossa apatia e comodismo? Nesta perspectiva, fazer memória, reviver, celebrar e procurar os nexos da vida de Ezequiel, não seria, na verdade, uma forma de conferir sentido às buscas de nós mesmos?
Continuam ressoando aqueles velhos e sempre reformulados questionamentos: afinal, por que o padre foi se envolver em assuntos que não eram de sua competência? O que a Igreja tem a ver com questões de terra, índios, pobres? Mas … cá entre nós: não seria essa desvirtuação um subterfúgio que, em última instância, visa justificar a causa mortis da nossa sensibilidade, empatia, compaixão, amor?
A ótica do tempo aponta para um passado que, aos poucos, se torna remoto. Mais alguns anos e as gerações que conheceram o Pe. Ezequiel estarão lá com ele. Mas, então, por que não nos deixam em paz? Por qual razão perturbam nosso sossego e tumultuam nossa paz?
Nisso tudo, porém, há um outro lado. Será que não nos sentimos responsáveis pela morte de Ezequiel? A dele, talvez não, e sim a de muitos/as que continuam sendo violentados sob o nosso olhar complacente! Todos os anos a Comissão Pastoral da Terra – CPT e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, publicam Relatórios de Conflitos e Mortes no campo e nos territórios. Isso nos incomoda, ou preferimos fazer de conta que não é conosco?
É no emaranhado dessas ambiguidades, então, que pretendo resgatar algumas questões que o Pe. Ezequiel, a seu tempo e a seu modo, escolheu enfrentar e, reformuladas, permanecem vivas e desafiadoras. São elas:
Antes de mais nada … nada de mistificações!
• A questão da terra, da distribuição da terra, das condições básicas e essenciais de produção do sustento e da vida digna numa relação amorosa, fraterna e respeitosa para com a terra.
• A questão dos povos indígenas (mas não só). Da demarcação e proteção dos territórios como condição indispensável para qualquer outra proposição. Continuam desafiadoras as dimensões humanas e humanizadoras, o respeito, a dignidade, a valorização do “outro”, as questões étnico-culturais, sociais, econômicas, para não falar das religiosas…
• A questão eclesial. As lembranças remetem a um Ezequiel respeitoso das pessoas, valorizador das experiências, sonhador e incentivador da pluralidade, diversidade, heterogeneidade. Ainda que, porventura, essas questões não estivessem devidamente claras na época, a nossa angustia é que continuam embaçadas em nós e entre nós! A ambiguidade nos persegue e formata o nosso tempo. Mas ela não nos deve imobilizar!
Mansueto Dal Maso, comboniano em Porto Velho/RO