O maior dentre vós seja vosso servo
Existe uma doença que pode afetar todo mundo, sobretudo quem tem responsabilidade dentro da comunidade. Trata-se da esclerocardia, isto é, a síndrome do coração de pedra. É a principal causa da rejeição de Jesus e da sua Palavra. Afeta a todos/as, até mesmo os apóstolos. É motivo de tristeza para o Filho de Deus. Apesar disso, ele nunca fica com raiva. Sofre porque sabe que a esclerocardia não só entristece a Deus, mas também desumaniza as pessoas, comprometendo sua qualidade de vida. Por isso, fala dela o tempo todo, denunciando os sintomas e apontando os remédios.
No Evangelho de hoje Jesus identifica três sintomas e aponta três remédios (Mt 23,1-12). O primeiro sintoma é a hipocrisia: “dizem e não fazem”. É o divórcio entre fé e vida, o dizer e o fazer, a verdade proclamada e a falsidade vivenciada. Não se trata das pequenas contradições que fazem parte do nosso do dia a dia, mas de um estilo de vida não integrado, fragmentado, estruturalmente contraditório e esquizofrênico. É o principal motivo de escândalo aos olhos do mundo. Coloca em xeque a credibilidade. A vida nos ensina que o que torna crível a nossa palavra é o testemunho. O mundo contemporâneo escuta mais as testemunhas do que os mestres, e se escuta os mestres é porque antes de qualquer coisa são testemunhas, dizia São Paulo VI na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi. Aquilo que somos grita muito mais forte daquilo que dizemos. A fé não precisa de bons pregadores, mas de autênticos discípulos. A Palavra de Deus necessita de humildes servidores e não de perversos manipuladores. A única lição de moral que tem chance de pegar é a própria conversão. O melhor sermão é o bom exemplo. O argumento que convence é a coerência.
O segundo sintoma é o rigor legalista e o moralismo intransigente com os outros e a permissividade consigo mesmo: “Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los nem sequer com um dedo”. É a moral relativista, que se adequa aos interesses e depende das pessoas e das circunstâncias. É uma postura arbitrária, que sobrecarrega e asfixia. Ignora o ensinamento de alguém que dizia: ”Seja você a mudança que pretende ver nos outros”. Não se trata de uma crítica a Lei, mas àqueles que, amparando-se nela, a burlam, não cumprindo suas profundas exigências e, sobretudo sua essência que é o Amor. Crer para nós cristãos/ãs é, antes de qualquer coisa, amar a Deus e ao próximo. É uma relação filial com o Pai e fraterna com os/as outros/as. Quando isso não acontece, a fé se torna uma religião que não liberta, mas escraviza.
O terceiro sintoma é a ostentação que se traduz em gestos de vaidade, autoreferencialidade e vã gloria: “Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros”. É uma forma de egolatria. É o cultivo obsessivo da aparência em detrimento da essência. É a tentativa de preencher o vazio interior com o culto à imagem. É a dependência escravizante da opinião alheia. É a fome de consenso e de sucesso, inclusive pastoral, que se mede pelo número de likes nas redes sociais e a quantidade de seguidores. “A fecundidade pastoral, a fecundidade do anúncio do Evangelho, não depende do sucesso nem tampouco do insucesso conforme critérios de avaliação humana, mas da conformação à cruz de Jesus, da disponibilidade a doar-se por amor” (Papa Francisco). A obsessão pela autoafirmação pode levar a paradoxos alucinantes, como realizar obras belas e santas somente para conseguir um retorno de imagem ou não assumir posições mais proféticas para não perder público ou não se solidarizar com segmentos marginalizados da sociedade para não “sujar” a própria imagem. Os vaidosos não escutam Deus, nem o clamor dos pobres. Só ouvem os aplausos.
Para cada um destes sintomas, Jesus propõe um remédio. O primeiro, é “fazer o que dizem e não o que fazem”. É um sinal de maturidade. É a capacidade de captar a luz da verdade para além da triste aparência. Trata-se de um remédio de difícil aplicação por causa de nossos preconceitos que precludem qualquer possibilidade de reconhecer o bem em que já rotulamos definitivamente como “pessoa não merecedora de credibilidade e confiança”. A Bíblia nos ensina que Deus pode falar e agir por qualquer pessoa, mesmo por quem aparentemente não merece crédito.
O segundo remédio é não absolutizar-se. Quando aparecem surtos de mania de grandeza, é bom lembrar as besteiras que fizemos na vida para um imediato esvaziamento da nossa presunção. Como também, é bom não criar “mitos”. Cuidado com quem se acha dono da verdade e fala de Deus como se soubesse tudo a respeito dele. É um perigo que pode afetar também nós. É bom aterrissar. Mais alto queremos voar, e mais Jesus nos puxa para o chão. O secreto de crescimento de si e dos outros é a humildade que tem tudo a ver com a nossa origem humana. A lógica das relações que deve prevalecer na comunidade é aquela da humildade. O antidoto a autoesaltação farisaica é a postura da criança: “Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Rino dos Céus (Mt 18,3). O “competente doutor em teologia” não é aquele que fala de Deus, mas que deixa Deus falar através dele. O bom mestre é antes de qualquer coisa um discípulo. Sabe escutar e tem uma insaciável sede de aprender. É bom o pai que, antes de qualquer coisa, é um bom filho. Sabe conduzir quem se deixa conduzir. Pode ajudar a curar as feridas alheias quem tem a paciente humildade de reconhecer suas próprias feridas e sabe, na própria pele, quanto seja difícil o processo de cura. Aqueles/as que exercem cargos e funções são chamados a testemunhar com o exemplo mais do que com as palavras a presença invisível do Pai, mas não a substitui-la, pois Ele nunca está ausente. Portanto, ninguém, em função do seu cargo, se atreve a tomar o seu lugar, atribuindo-se a função de dono da verdade e, sobretudo, de juiz da consciência alheia. Qualquer responsabilidade na comunidade tem sentido se é exercida em espírito de serviço. A Igreja de Cristo é uma comunidade de irmãos e irmãs, uma fraternidade que tem como critério de discernimento e de ação o serviço. Este é o estilo de Jesus que veio para servir e não para ser servido (cfr Mt 20,26). É justamente este o terceiro remédio, aquele que faz a diferença. A plenitude da vida se encontra na disponibilidade a servir. Servimos se nos colocamos a serviço. Se não servimos, não servimos a nada. Vivamos a serviço da Glória Deus sem menosprezar as suas criaturas. “A Glória de Deus é o homem/mulher vivo/a; e a vida do/a homem/mulher é a visão de Deus”, dizia Sant’ Irineu. Basta pouco para fazê-lo feliz. Basta servir como Ele serve e amar como Ele ama. É sobre esta matéria que nos interrogará no fim da nossa vida terrena.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)