
O MARCO TEMPORAL CONSTITUCIONAL É AQUELE QUE MARCA O INÍCIO DA “TERRA SEM MALES”, DE UM MUNDO MAIS JUSTO E MAIS FRATERNO
A aprovação do marco temporal pela Câmara dos Deputados, fruto da ofensiva da bancada ruralista, representa a principal aposta do agronegócio brasileiro para travar as demarcações de terras indígenas e questionar territórios já demarcados. As consequências são devastantes para os povos indígenas. É o marco temporal de sua extinção. É a legalização daquele genocídio que começou com a chegada dos conquistadores e marcou duramente a história dos povos indígenas. Um dos retratos mais contundentes e mais proféticos desta tragédia é a Missa da Terra Sem Males, escrito por dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra. O texto escandalizou muitas pessoas, sobretudo a TFP, (Tradição, Família e Propriedade) que a tachou de “sacrilega” e “blasfema”. Na realidade se a TFP fosse coerente com seus princípios deveria também defender a Tradição, a Família e a Propriedade dos povos indígenas. Não quero entrar na polêmica canônica, o que me interessa é lembrar a análise lúcida da história da invasão e da consequente devastação dos povos e das culturas indígenas, a começar pela negação do direito à terra. “Perder a terra, perder a língua, perder os costumes, é perder o chão da vida, deixar de ser. Deixar de ser aquele Povo e, geralmente, deixar de ser si mesmo. Quem não respeita uma Cultura, quem age etnocentricamente, escraviza, sim. O Evangelho é Fé, não cultura. O Evangelho deve se encarnar em todas as Culturas de todos os Tempos. Todas elas humanas, todas susceptíveis de um aperfeiçoamento superior: a Graça do Verbo, encarnado nelas.” (Pedro Casaldáliga). A Missa da Terra-sem-males é um texto de memória, remorso, denúncia e compromisso. Joga na nossa casa a inenarrável violência com que os conquistadores saquearam este Continente. Mostra, sobretudo, que não houve um saudável encontro entre culturas diferentes, mas um violento choque com a imposição pela força daquela dos conquistadores sobre aquela dos povos originários.
“Tu nos deste a beleza do Mar e tuas praias diz o texto, reconhecendo o papel dos povos indígenas no cuidado para com a Terra -. Tu nos deste a tua Terra e seus segredos, os pássaros, os peixes, os animais amigos, servidores. O milho da espiga apertada e repartida, o bulbo generoso da mandioca pão de cada dia, o guaraná cheiroso da floresta, o caldo assossegante do chimarrão do Sul. O remédio da Terra enfermeira. A canoa, voadora nas águas. O Pau-brasil de fogo, nome do coração do nosso País… E nós te depredamos, desnudando as florestas, calcinando teus campos, semeando veneno nos rios e no ar. A Terra generosa separando, por cercas, os homens contra os homens: para engordar o gado da fome nacional, para plantar a soja da exportação escrava. Tu eras a Terra livre, tu eras a Água limpa, tu eras o Vento puro, fecundos de abundância, repletos de cantigas. E nós te dividimos em regras e em fronteiras. A golpes de ganância retalhamos a Terra. Invadimos as roças, invadimos as tabas, invadimos o Homem. Tu fazias um caminho a cada vez que passava. Era a Terra o caminho. O caminho era o Homem. Nós abrimos estradas, estradas de mentira, estradas de miséria, estradas sem saída. E fizemos do Lucro o caminho fechado para o Povo da Terra. Tu eras a Terra inteira, tu eras o Homem Livre. E nós te reduzimos em Vitrina e Reserva, em Parque zoológico, em Arquivo-poeira. Teu tempo era o Dia e a Noite, o Sol e a Lua, as Chuvas e os Ventos gerais, teu tempo era o Tempo, sem horas. E nós te amarramos ao tempo do relógio, no nosso pouco tempo de pressas e interesses, ao tempo-concorrência”. E, como se não bastasse todo este tempo marcado pelos golpes da dor, agora queremos enquadrar a história milenária dos povos indígenas no marco temporal, perversa invenção de grileiros, garimpeiros e madeireiros, legítimos herdeiros da violência dos conquistadores, que veem a terra com os olhos da ganância como fonte de lucro ainda inexplorada. Povos que habitam estas terras desde sempre agora devem dar conta de demonstrar que estavam aí em 1988 a quem chegou na terra deles bem mais tarde do que eles e os tirou dela à força.
Já chega de tanto sofrer. Sonhamos marcar um novo tempo. Queremos escutar, de coração aberto, o justo clamor dos povos indígenas com a mão do remorso sobre a ara do peito. “Queremos reparar a História desta Terra, o massacre secular dos seus povos. Unidos na Memória da Páscoa do Senhor voltamos para a História com um dever maior. Unidos na memória da Antiga Escravidão juramos a Vitória na nova servidão. América Ameríndia, ainda na Paixão: um dia tua Morte terá Ressurreição! A Páscoa que comemos nos nutre de porvir. Seremos nos teus Povos o Povo que há de vir. Os Pobres desta Terra queremos inventar essa Terra-sem-males que vem cada manhã” (Casaldáliga e Terra). NÃO AO MARCO TEMPORAL, legalização do extermínio dos povos indígenas. O único marco temporal que um dia festejaremos juntos/as é aquele que marca o início do mundo novo, que tanto sonhamos. José de Anchieta, cuja memória celebramos hoje, e todos os patriarcas, profetas e mártires da causa indígena inspirem sempre a nossa caminhada em busca de Pão, Terra, Teto, Trabalho e Dignidade para todos/as,
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)
Imagem: © Joédson Alves/Agência Brasil