O Ser Humano é mais que o Sábado
A hipocrisia religiosa dos fariseus é o pecado que Jesus mais condena. Eles observam a Lei em todos os seus detalhes, mas negligenciam o essencial: o mandamento do amor. A monte desta postura cheia de contradições, há vícios que o Mestre desmascara severamente: a vaidade e a ostentação; a incapacidade de discernir o importante do acidental e secundário; a contradição entre seus ensinamentos e suas posturas e a pretensão arrogante de salvar-se por meio de seus próprios méritos alcançados através de sacrifícios pessoais e o cumprimento meticuloso das obrigações legais até nos detalhes mais insignificantes como pagar o dízimo da hortelã, do endro e o cominho em prejuízo dos preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mt 23,23). Os fariseus fazem questão de acompanhar Jesus para apontar suas “transgressões” e hostilizá-lo. O Mestre, por sua vez, aproveita destas controvérsias para revelar a verdade sobre si mesmo e esclarecer aspectos importantes da sua missão. Neste caso específico, afirma a prioridade da pessoa sobre qualquer preceito: salvar uma vida é mais importante do que respeitar o descanso do Sábado. Na realidade, Jesus não diz nada de novo. O descanso sabático fora criado como medida humanitária. Originariamente era uma regra para beneficiar o ser humano, para cuidar da vida e protegê-la de toda forma de escravidão, mas com o passar do tempo, transformou-se numa carga opressora. Jesus quer acabar com isso. Deseja libertar o povo de todo tipo de opressão, inclusiva daquela religiosa imposta pelo legalismo casuístico dos fariseus que, infelizmente, não passou de moda, mas é um mal crônico que afeta ainda pessoas e instituições religiosas do nosso tempo.
Arrancar espigas de trigo em um campo durante a viagem era permitido por lei, sobretudo quando os viajantes estavam com fome. Os fariseus, porém, ficam escandalizados porque os discípulos estão fazendo isso em dia de Sábado. Jesus não se deixa intimidar. Tem resposta para tudo. Depois de citar dois casos de “transgressão lícita” do sábado relatados pelas próprias Escrituras (o episódio de Davi e seus companheiros, fugitivos e famintos, que comem os pães colocados no altar, que só os sacerdotes podiam comer e o caso dos sacerdotes que trabalham no templo em dia de sábado sem se tornarem culpados), faz duas afirmações que revelam aspectos importantes de sua identidade, mas que escandalizam a elite religiosa: Ele é “maior do templo” e “senhor do sábado” (Mt 12,1-8).
Quando Mateus escreve o Evangelho, o templo já havia sido destruído pelos romanos. Agora é Jesus, o seu corpo, o lugar da presença e do encontro com Deus. Nele toda a lei encontra cumprimento e interpretação. A Lei serve para aprender a amar como Deus ama. Ela vem de Deus se promove a vida, cuida das pessoas, garante dignidade, incentiva a solidariedade e visa o bem comum. Cumpri-la é um prazer e não uma obrigação. “Colocar a lei antes da pessoa é a essência da blasfêmia” (Simon Weil). Deus quer amor e não sacrifício” (Os 6,6). É a misericórdia que move a Sua ação no mundo. Onde ela é esquecida, a Lei também é aviltada, por mais santas e boas que nos pareçam nossas intenções e observâncias. Jesus mostra essa misericórdia durante toda a sua vida. No episódio da mulher condenada ao apedrejamento por ter sido flagrada em adultério, Ele “Inclina-se diante do mistério da pessoa, não do código penal” (Ermes Ronchi), Interessa-lhe a pessoa muito mais do que as providências legais, sobretudo quando são utilizadas para expor ao linchamento público, matar a sede de vingança, humilhar, consagrar preconceitos, rotular definitivamente as pessoas e matar qualquer oportunidade de futuro.
“O Filho do Homem é o Senhor do sábado”. Foi Deus que instituiu o Sábado e o quis a favor das pessoas e não contra elas. O culto a Deus nunca pode e deve atrapalhar e prejudicar o exercício da misericórdia. Defender e promover a vida é o ato de culto que mais o agrada. A parábola do Samaritano afirma isso claramente, quando mostra que a prática religiosa não pode levar a descuidar do próximo. Infelizmente, nós cristãos, muitas vezes, damos importância apenas às práticas devocionais dirigidas a Deus e ignoramos as práticas de misericórdia dirigidas ao próximo. Tendemos a tornar absolutas certas normas que foram respostas a problemas concretos de uma época passada. Primeiro vem o Reino de Deus e depois seus acréscimos. Todo culto cristão, pessoal ou público, desvinculado de uma opção séria e comprometida pelo pobre e excluído, é um culto sem misericórdia, farisaico (Bíblia “Ave Maria”).
(Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)