Ousar o Evangelho (Mt 5,38-42)
Jesus tem muita coragem. Ousa colocar em discussão preceitos atribuídos pela tradição a Moisés, provocando a dura reação de seus contemporâneos Sua postura não tem nada a ver com rebeldia nem tampouco com anarquia. Seu objetivo é trazer a lei de volta para sua origem e seu verdadeiro sentido: o serviço à vida, à justiça, ao amor e à verdade. Não opõe à lei antiga uma lei nova, mas a rescreve à luz do mandamento do amor a Deus e ao próximo. O que interessa ao Mestre é afirmar o respeito sagrado à pessoa humana, qualquer que seja sua condição e sua situação, e a denúncia contra tudo aquilo que, mesmo camuflado por artifício legal, atenta contra a dignidade do homem e da mulher. Nenhuma Lei de Deus é compatível com a violência e a negação dos direitos humanos.
O primeiro assunto a entrar em pauta é o da justiça. O “sistema penal” dos antigos resumia-se na “Lei do Talião”, que estabelecia o princípio da equidade e da proporcionalidade da pena para que a sociedade não naufragasse no caos de uma violência indiscriminada: a toda ação maldosa devia corresponder uma reação adequada da mesma ordem. Se alguém arrancava um olho da vítima, tinha seu olho arrancado. A quem quebrava um dente, quebra-se o dente. Hoje em dia a Lei do Talião é considerada uma verdadeira brutalidade, mas na época de Moisés (1200 a.C.) era um progresso em relação à lei de Caim, que não tinha limites, permitindo reações desproporcionadas como vinganças sete vezes maiores do que o dano sofrido e a possibilidade de estender a punição aos familiares e descendentes do réu até que todos os parentes da vítima se sentissem satisfeitos.
A Lei do talião não acabou. Mesmo perdendo a sua versão mais cruel, continua vigorando nos nossos comportamentos individuais e nos códigos legais. A proporcionalidade da pena é considerada como necessária para fazer justiça e assegurar uma convivência humana aceitável. Mesmo se a lei de execução penal sublinha a dimensão ressocializadora da pena, o punitivismo aflora com mais intensidade para aplacar e desejo de vingança. Grandes parcelas da sociedade pelo desejo de retribuir o mal com o mal. Assim, a violência instintiva, como os linchamentos físicos e morais, e legalizada, ou mais ou menos controlada, parece ser a única resposta para enfrentar todo e qualquer tipo de violência que ameace o indivíduo e a coletividade. Um exemplo entre tanto é a pena de morte, aclamada como remédio necessário pela maioria da população, inclusive por pessoas que se denominam cristãs. Jesus rejeita a lei do talião. Propõe a subversão deste princípio. Ele não cabe na lógica do Evangelho, porque corrompe as relações das pessoas entre si e com Deus. A mudança radical só poderá acontecer a partir da força criadora do amor que é a única resposta para pôr fim a toda a violência (Nota da Bíblia Ave Maria). Apesar da hostilidade de quem o escuta, abre o caminho da misericórdia e do perdão. Propõe o manual da paz que contém ações concretas que ajudam a vencer o mal com o bem. “Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário.se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda”. Não se trata de uma não violência passiva, mas ativa. O/a Cristão/ã se compromete a enfrentar todo tipo de maldade que inferniza a vida, mas não o faz maltratando que o pratica. Ele, fiel aos ensinamentos de Jesus, toma a decisão de amar seu inimigo, fazer o bem a quem o odeia, orar pelos que o perseguem. Mesmo responsabilizando-os pelos seus atos, o faz com o intuito de oferecer-lhes as oportunidades de sua recuperação. Esta é a revolução do Evangelho: o amor a todos/as, incondicionalmente, assim como é o amor do Pai que faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons. Por incrível que possa aparecer, o seu “bom dia” vai primeiro àqueles/as que, do nosso ponto de vista, não o merecem. O amor não tem limites, não conhece barreiras e desdenha os preconceitos. Trata-se de uma proposta desconcertante, mas feita com a autoridade que vem do alto. Não é uma invenção de Jesus nem da Igreja nem de algum doído varrido, mas é a vontade de Deus. Somos livres de decidir o que fazer diante de uma ofensa recebida, mas para quem decide de seguir Jesus, não tem outra saída, a não ser o perdão. Perdoar é a atitude mais profundamente cristã. Não é fácil, para não dizer impossível. Custa dar um basta a esta cadeia infernal que nos torna todos inimigos. O discurso evangélico de Jesus é deliberadamente provocativo, porque o Mestre quer que entendamos que a medida do Amor divino é o excesso, o exagero de Ágape, e isso vai além de qualquer regra humana e de qualquer ideologia.
Sozinhos/as não damos conta de ser e agir assim. Peçamos a Deus o dom do perdão. Só o seu Espírito pode nos conduzir pelo caminho da paz: “Nós vos agradecemos, Deus Pai todo-poderoso, e por causa de vossa ação no mundo vos louvamos pelo Senhor Jesus. No meio da humanidade, dividida em contínua discórdia, sabemos por experiência que sempre levais as pessoas a procurar a reconciliação. Vosso Espírito Santo move os corações, de modo que os inimigos voltem à amizade, os adversários se deem as mãos e os povos procurem reencontrar a paz. Sim, ó Pai, porque é obra vossa que a busca da paz vença os conflitos, que o perdão supere o ódio e vingança dê lugar à reconciliação” (Oração Eucarística sobre a Reconciliação 2). Assim seja.
(pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano).