
P. Chico Colombi: esperança em tempo de guerra – Moçambique
“Dizia também: O Reino de Deus é como um homem que lança a semente à terra. Dorme e cresce, levanta-se, de noite e de dia, e a semente brota e cresce, sem ele a perceber.” (Mc 4,26-27)
Estas palavras do Evangelho de S. Marcos me ajudaram a entender o que…
Pe. Chico Colombi, autor do artigo
Destino: Moçambique
Estas palavras do Evangelho de S. Marcos me ajudaram a entender o que é experienciar a fé num povo com cultura diferente da minha. Muitas vezes, o missionário em missão pensa ser o salvador de tudo e esquece que o Reino de Deus já está presente no coração do povo. O missionário parte enviado por Deus a partir de uma vivência da fé batismal de sua comunidade de origem, para partilhá-la com um outro povo de cultura diferente. O objetivo deste texto é relatar minha rica experiência de fé e identidade missionária comboniana junto ao bom povo moçambicano no meu longo período de missão.
Fui destinado para Moçambique no fim do ano de 1986 e cheguei, como missionário comboniano, no início do ano de 1987. Naquele tempo, o país passava por uma guerra civil, que durou até o ano de 1992, entre a Renamo (Resistência nacional moçambicana) e Frelimo (Frente Libertação Moçambicana – partido no poder até hoje). Foi uma guerra difícil e sanguinária.
Missionário em Boroma, Tete
A primeira missão foi Boroma que fica no centro do país, província de Tete, vizinha do Malawi, Zimbabwe e Zâmbia. É uma província rica em minérios e muito quente, principalmente na região da cidade de Tete. Como é uma província de fronteiras, o povo é diferente dos outros moçambicanos devido à convivência com os países vizinhos de língua inglesa.
Boroma era uma missão fundada pelos missionários jesuítas alemães lá pelo ano 1875, a 28 km da cidade de Tete, próximo do rio Zambeze. Foi a principal missão dos jesuítas no país e fica no vale do Zambeze. Fica sobre a montanha Boroma, muito bonita. Era uma missão bem completa, com escolas para professores e de artes e ofícios. Aí nessa missão foi escrito o primeiro livro da África Austral, a gramática Nyungwe e livros de catequese nas línguas locais. Da missão de Boroma, os jesuítas fundaram outras missões de Miruru, fronteira com Zimbabwe, Zâmbia e Malawi, e a grande missão de Lifidzi, em Angónia, região mais agrícola da província e vizinha do Malawi.
No ano de 1975, o país ganhou a sua independência de Portugal. Em julho do mesmo ano, a Frelimo, optou pelo sistema comunista marxista, nacionalizando todos os bens dos portugueses e da igreja.
Quando cheguei a Boroma, os missionários já moravam numa casa construída no meio da aldeia do povo. Foi muito triste ver uma Igreja tão bonita e uma bela estrutura da missão tornando-se ruínas devido ao abandono. Quanto sofrimento dos missionários e do povo na construção daquela missão histórica e de fé sendo destruída em tão pouco tempo! Lembro muito bem uma frase do Pe. Severino Peano, antigo missionário comboniano, que me dizia: “a nacionalização que a Frelimo fez foi obra do Espírito Santo”. Eu não entendi bem o seu julgamento e somente depois fui compreender. De fato, a Igreja não conseguiria levar à frente aquele estilo de missão, pois era muito custosa a manutenção das missões. Hoje essa missão está em ruínas e quem leva a “culpa” é a Frelimo, mas a igreja verdadeira não acabou. Há hoje uma igreja viva, com várias comunidades, com seus ministérios, leigos e catequese. Quando o governo nacionalizou as capelas, o povo, pouco a pouco, começou a rezar debaixo de árvores e sem grandes gastos para manutenção.
Ataque à aldeia e missão
Há um fato marcante que sucedeu no tempo passado em Boroma durante a guerra civil. Quando cheguei lá, eu ouvia falar de guerra e de ataques. Depois de uns sete meses de presença houve o primeiro ataque. Lembro muito bem que por volta das quatro da manhã houve um tiro de fuzil e o meu colega me acordou dizendo: “Vamos fugir!”. Eu resisti dizendo que eram milicianos malucos e bêbados. Logo depois mais dois tiros e aí fugimos logo, pois não havia mais dúvida. Saímos somente com a roupa do corpo e chinelos de dedos. Graças a Deus conseguimos fugir e não fomos atingidos pelas balas de AKM (metralhadora). No alto da montanha, longe do perigo, se via o triste espetáculo dos tiros, das casas queimadas, estrondos dos morteiros, etc. O pensamento que vinha à cabeça: “Aquelas pessoas, as crianças, as mães… que não conseguiram fugir…” É uma imagem triste e lamentável. Depois houve um grande silêncio e logo vieram dois helicópteros do Zimbabue, amigos e parceiros de guerra da Frelimo. Pensávamos… agora podemos voltar para casa. Porém quando estávamos chegando, os soldados zimbabueanos começaram a atirar de dentro do quintal da casa e tivemos que recuar, fugimos de novo e sem rumo. Mais tarde, voltamos e encontramos o povo da aldeia que já retornara às suas casas para ver o que sobrou do ataque. Encontramos a nossa residência metralhada, o Land Rover e as duas motos queimadas e os guarda roupas vazios. Confesso que foi o dia de minha vida que me senti mais pobre, somente com a roupa do corpo. No começo veio-me uma grande raiva, mas depois, pensando bem, rezando e refletindo, agradeci a Deus, pois aprendi que estava muito preso às coisas, pessoas, ou seja, à minha segurança. Só que a pobreza demorou somente um dia, pois a caritas diocesana logo providenciou as roupas de cama e roupas pessoais.
Falar de estar com o povo num momento de guerra não é fácil. É aí que se entende o que significa seguir o Mestre até o fim. O nosso provincial sempre nos dizia para não abandonar a comunidade e estar junto ao povo nesse momento difícil da vida dele.
Lembro muito bem que, no primeiro ataque a Boroma com o metralhamento dos zimbabuanos à residência, a única finalidade era matar-nos e depois culparem a Renamo pelas mortes. Se isso tivesse acontecido, “Que propaganda para a Frelimo!”. De fato o bispo da diocese queria fechar a comunidade comboniana de Boroma, transferindo-a à cidade de Tete. Tal notícia chegou aos ouvidos das lideranças da paróquia e um deles, chamado Eduardo Vinho, veio conversar comigo e perguntou se era verdade que os missionários iriam para Tete. Eu lhe respondi que era a vontade do bispo, mas não da comunidade religiosa. Lembro muito bem da resposta do Sr. Eduardo:” Se vocês ficam aqui, nós nos sentimos mais fortes e mais firmes na fé”. Foi aí que percebi o que significa estar com o povo até as últimas consequências, o que é evangelizar com o testemunho.
Depois de um período na antiga missão jesuítica de Boroma, eu fui enviado a Mutarara pela direção provincial com dois padres novos da diocese, no início do ano 1993, para acolher os refugiados vindos do Malawi. Aqui me aconteceu um fato bonito e de grande graça para minha vida missionária no meio do povo Sena.
Nova missão: Mutarara
Mutarara é uma região do povo sena que fica ao sul da província, vizinha das outras províncias de Sofala e Zambézia e do vizinho Malawi donde os refugiados de guerra tinham fugido dos ataques, perdendo todos os seus bens. No Malawi havia dois grandes centros sob a responsabilidade da ACNUR (Agência da ONU para refugiados). Eles eram atendidos espiritualmente por missionários e missionárias combonianas que fizeram um grande trabalho de evangelização. Depois do acordo de paz, eles foram enviados de volta aos seus lugares de origens para recomeçarem a vida. Que vida difícil! Aqui entrava o nosso trabalho: acolhê-los e marcar a presença da Igreja nesse momento difícil na vida desse povo sofrido e sem esperança.
Lembro-me bem que eu o Fernando Escrivão (padre diocesano) e eu fomos a Mutarara pouco antes da quarta-feira de cinzas. Encontramos o local da missão praticamente destruído, casas sem teto, sem portas e muito mato. Mas fomos bem recebidos pelas lideranças. Depois dos protocolos, as lideranças nos mostraram três urnas de ossos humanos que eles tinham recolhido na frente da Igreja, velhos, mulheres e crianças que foram massacradas por soldados, provavelmente pelos soldados da Frelimo, numa dessas perseguições aos soldados da Renamo. Não encontrando os tais soldados, eles matavam o povo para criarem o terror. É coisa da guerra e não passa pela compreensão humana. Nessa missão havia boas comunidades cristãs resistentes, ou seja, muitas pessoas não conseguiram fugir para o Malawi e viviam no mato. Eles continuaram a rezar e a estudar catequese, sempre esperançosos de que um dia a guerra terminasse e a vida voltasse à sua normalidade. Esta espera demorara mais de catorze anos.
Festa: Batismos e Casamentos
Nessa região, sucedeu-me um fato marcante para a minha vida missionária. Segundo as normas do catecumenato, o candidato aos sacramentos iniciais deve ter quatro de anos de catecismo, passando por várias cerimônias. Os eleitos ao batismo faziam uma semana de retiro, começando com o Domingo de Ramos até a noite de Páscoa. Durante essa semana, eles rezavam, recebiam catequese, participavam das cerimônias santas e alguns se confessavam. Fui visitar o grupo reunido nas dependências da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo de Nhyangoma, encontrei aí uns 200 catecúmenos adultos para o batismo e alguns para o sacramento do matrimônio. Chamou-me a atenção a organização deles. Cada família trouxe a comida, a panela e algumas pessoas cozinhavam para os participantes do retiro. Fui bem recebido. Encontrei-me com os responsáveis das várias comunidades e logo eles me falaram que estavam aí para receberem os sacramentos na noite de Páscoa. Fiz o encontro com ajuda de um intérprete, pois não dominava a língua Sena. Disse-lhes que estava lá para os visitar e que eles receberiam os sacramentos numa outra oportunidade. Mas eles insistiam que estavam preparados para receberem os sacramentos na Páscoa. Senti uma forte resistência e percebi que não adiantava ficar ali discutindo sobre a mudança de datas. Para os que receberiam o batismo, eu não tive dúvidas, mas para os que receberiam o matrimônio, eu tinha medo porque me vinha a dúvida: “será que eles estavam mesmo em condições para o matrimônio conforme a lei da Igreja?”. Confiando na misericórdia de Deus, decidi pela realização do sacramento. Então, comecei a preencher as fichas de inscrição para cada participante. Lembro bem que perguntei a um senhor se ele tinha só aquela mulher ou uma outra; ele prontamente me respondeu de um modo firme e um pouco chateado: “O catecismo da Igreja Católica me ensinou que o catecúmeno, ao receber o sacramento do matrimônio, só pode ter uma mulher”. Fiquei calado e não fiz mais perguntas fora da ficha de inscrição.
Cheguei cedo ao local para organizar a liturgia, acertar os últimos detalhes da celebração da Vigília Pascal e atender as confissões. A celebração começou por volta das 20h30 e foram realizados mais de 250 batismos e uns 20 matrimônios. Foi uma celebração demorada com cantos, danças e muita alegria, foi uma noite de festa. Como era bonito ver aqueles rostos alegres e felizes, pois eles estavam ansiosos por essa noite e por esse acontecimento de fé.
Este fato marcou a minha vocação missionária, ensinou-me a confiar mais na força do Espírito Santo e a sentir a presença de Deus nas várias culturas e povos. Confesso que saí mais evangelizado por este povo Sena, de Mutarara.
O primeiro período como missionário me ajudou a entender que partimos para uma terra para preparar o caminho do Senhor e nada mais, pois o centro do anúncio é a Palavra de Deus. O grande perigo do missionário em terra de missão é ser ele o protagonista dela, pensando somente que o dinheiro resolve todos os problemas e criando assim estruturas, ocupando o lugar e a responsabilidade do Estado. O missionário é um simples instrumento nas mãos de Deus, deve confiar mais na Sua providência
Outra época, nova realidade, novo desafio
Já no segundo período de missão, eu senti uma diferença grande. Com a facilidade da comunicação, internet, telefone, televisão, corre-se o perigo de estar numa terra de missão somente de corpo, o espírito, a cabeça… continuam no país de origem. É a dificuldade de inculturação. Por isso, como preparar o caminho do Senhor sem colocar o coração?
Hoje, com a comunicação fácil, acompanhamos a realidade de nosso país de origem, mas nos esquivamos da realidade em que estamos verdadeiramente vivendo. Tive que me obrigar a acompanhar mais de perto a realidade de Moçambique, através dos meios de comunicação locais para entender o sentimento daquele povo.
Os anos passados em missão mudaram meu modo de fazer e sentir a missão, me sinto mais enriquecido na fé. Enfim, agradeço a Deus e aos missionários combonianos pelos anos passados em Moçambique.
Francisco Colombi, comboniano