Padre Ezequiel Ramin: um mártir contestado
Quem no Brasil não ouviu falar do Padre Ezequiel Ramin, o missionário comboniano que foi morto em 24 de julho de 1985, aos 32 anos de idade, na fazenda Catuva? Quem não experimentou dor e repulsa ao visitar o lugar onde ocorreu a emboscada fatal: lugar administrativamente situado no Estado de Mato Grosso e eclesiasticamente em Rondônia no território da paróquia de Cacoal, Diocese de Ji-Paraná?
Alguns pontos firmes
A fim de compreender plenamente o significado desta morte (“morte infligida a um missionário fiel a sua missão evangélica de salvar vidas espezinhadas”), é necessário ter em mente alguns pontos que enquadram não apenas o ambiente físico, em que se deu o evento da morte do Padre Ezequiel, mas também o contexto de valores que estavam em causa. Não há dúvida de que foi uma execução por jagunços, contratados pelo proprietário da fazenda Catuva para se livrar de um missionário inconveniente que, naquela manhã de 24 de julho, junto com um sindicalista amigo dele, tinha ido lá para dissuadir os posseiros de permanecerem no território da fazenda, que havia se tornado um lugar extremamente perigoso para eles. Outro fato indiscutível é que o Padre Ezequiel foi para lá como representante de uma Igreja particular, a de Ji-Paraná, que, em nome de sua fé, tinha claramente tomado partido em defesa dos mais fracos, mais pobres e mais discriminados da região. Além disso, apesar de sua curta permanência ali, todos sabiam quem era o Padre Ezequiel e com que amor ele havia se dedicado ao seu povo: de fato, ele havia sido ameaçado de morte e no momento fatal havia se identificado e era identificável como sacerdote. Ainda, como corolário, e todavia não menos importante, deve-se acrescentar que o evento ocorreu em um momento extremamente perigoso para a segurança da vida dos próprios posseiros, que estavam lá para começar o cultivo de uma terra fortemente reivindicada pelo proprietário da fazenda Catuva (mais tarde, no julgamento criminal, ficou estabelecido que a maior parte era ilegal: cerca de 70.000 hectares). Além disso, tinha havido um pedido explícito das mulheres dos posseiros ao Padre Ezequiel para ir convencer os maridos a sairem de lá.
O martírio cristão
Dito isto, pensamos que não seja necessário nos determos em dados biográficos ou detalhes, com os quais todos já estão familiarizados. Em vez disso, tentaremos entender as razões pelas quais o fato do assassinato ocorrido na fazenda Catuva, deve ser identificado como martírio cristão, ou seja, morte em nome da fé e da caridade de Cristo. Em outras palavras, acreditamos que este fato só deve ser atribuído à justiça superior do Reino de Deus. Acreditamos também que o martírio é o momento mais alto da fé católica: uma graça e ao mesmo tempo um dom supremo que identifica a vida cristã em seu momento mais consistente, mais exigente e ao mesmo tempo mais humilde de seguimento do Senhor Jesus. Um ato supremo que na história testemunha o amor absoluto de Deus por cada pessoa humana concreta, portanto um ato que se origina do autêntico rosto misericordioso de Deus, manifestado em Jesus de Nazaré, e ao mesmo tempo fruto da fidelidade do mártir, que adere totalmente ao dinamismo do amor divino encarnado. O Evangelho o certifica: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Porém, aqui mesmo iniciam as maiores dificuldades em relação ao martírio do Pe. Ezequiel!
a) Críticas
Ezequiel Ramin, o mártir, é contestado antes de tudo porque não pode ser reconhecido como um mártir cristão (no máximo, diz-se, ele é um “mártir social”). Além disso, é contestado que ele possa ser apresentado como um exemplo a ser seguido por causa de sua vida concreta de cristão e sacerdote, e também de religioso de vida consagrada (um modelo manchado por idéias marxistas e liberais!). Finalmente, como se isto não fosse suficiente, não se deve mais falar da verdadeira fama do martírio, ou do impacto espiritual que sua morte gerou no povo de Deus (no máximo seria um fenômeno midiático induzido, uma operação de amplificação pela obra televisiva de de ficção de 1991, intitulada “A Casa Queimada”, produzida na Itália, e que teria estimulado e ampliado decisivamente a fama do personagem Ezequiel).
Neste ponto, é natural perguntar-se por que estas observações críticas continuam a ser apoiadas e divulgadas hoje, não apenas por certos círculos ricos da política e da sociedade, mas também por grupos dentro de uma Igreja fortemente tradicional.
“Mártir social”? Os céticos afirmam que ele é basicamente um “mártir social”, ou seja, uma pessoa que lutou por uma causa política. Um Padre violento manchado pelo marxismo (um Padre vermelho!) e que, portanto, abraçou a ideologia marxista e fez da violência e da luta de classes a chave para o advento de um novo tipo de sociedade e de homem. Em essência, segundo a acusação, ele é alguém que reduz a transcendência à mera imanência e prega o advento de uma sociedade na qual Deus é descartado como supérfluo, se não alienante. Como prova do que dizemos, é suficiente ler a insinuação que aparece no título do artigo: “Um santo marxista? A estranha proposta dos bispos brasileiros para o Sínodo”, produzida por uma “Correspondência Romana” não mais especificada (cf. panamazonsynodwatch.info – 6 de agosto de 2019). Uma insinuação, que se torna acusação explícita, quando nos primeiros e últimos parágrafos do mesmo artigo se afirma claramente que o Padre Ezequiel foi à fazenda Catuva para levar armas aos posseiros e juntar-se a eles na invasão da mesma fazenda. Estas duas declarações são seriamente prejudiciais para a pessoa e o trabalho do Padre e carecem de qualquer fundamento sério. De fato, os atos do julgamento criminal reconhecem o papel do Padre como pacificador e afirmam que até mesmo um dos assassinos, que confessou o crime e foi encurralado, teve que admitir que nem o Padre Ezequiel nem o sindicalista Adílio tinham um simples canivete sobre ele.
Quanto à acusação de marxismo, parece atribuída apressadamente, primeiro ao estudante do ensino superior Ezequiel e depois ao jovem missionário que se mudou para Rondônia. O significado do “Documento político do grupo ‘Mani Tese'” produzido pelo Ezequiel em 1973 foi distorcido em sua mensagem programática. Ele tinha sido preparado para o grupo florentino de “Mani Tese”, precisamente para evitar uma perigosa mudança extremista (a de cair nos braços da esquerda antagonista). Na verdade, o que poderia significar aquele forte chamado a querer agitar as bandeiras dos vários “Carlos Marx e Mao” e depois, infelizmente, baixar as dos santos nomes da Trindade (“atenção a não poder mais cumprir os mesmos compromissos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” – escrevia!). Mais ainda, o que resta da ideologia marxista se se tira dela a crítica corrosiva da religião (ópio do povo), a luta de classes e o uso da violência, como faz o jovem Ezequiel? Além disso, parece que a afirmação repetida da “matriz cristã” da sociedade, como ponto fixo a partir do qual recomeçar constantemente a reforma de tudo, é bem diferente da matriz dialética do comunismo! Quanto ao missionário Ramin, que tinha chegado e permanecido no Brasil por pouco tempo, a frase que ele escreveu em 7 de março de 1984 de Brasília: “Lutarei à esquerda em tudo, mesmo que me custe expulsão do Brasil” deve ser lida à luz de duas declarações posteriores, a fim de compreender seu pleno significado. A de 27 de agosto de 1984, desde Cacoal, aprofunda e esclarece a motivação da sua ação: “Estou aqui e estou trabalhando para dar uma mão ao Senhor Jesus. É a única razão que me impulsiona a continuar” e a outra, novamente de Cacoal, a 25 de dezembro do mesmo ano, esclarece sua opção e sua atitude: “Eu já dei minha resposta a essas pessoas: um abraço! Eu não estou vivendo esta situação, nem estou nela como um salva-vidas. Eu tenho a paixão de alguém que segue um sonho”. Penso que estas três últimas frases vão exatamente contra a temida contiguidade com a ideologia marxista e a prática violenta! Seu objetivo sempre foi o de uma sociedade cristã, justa e fraterna, e seus meios sempre foram os meios pastorais da Diocese de Ji-Paraná e seu bispo, com os qual ele agiu em estreita comunhão.
É claro que com tal opção e tal espírito, o Padre Ezequiel não podia deixar de ser odiado por aqueles senhores para quem um pedaço de terra (seria mais correto dizer “uma imensidão de terra em benefício de uns poucos”) valia mais do que um povo desesperado em busca de um torrão para poder alimentar suas numerosas famílias! Como também é odiado hoje por aqueles que assinam “Correspondência Romana” e têm a coragem de escrever sobre um jovem Ezequiel que era sensível a “supostas (adjetivo ignominioso) situações de pobreza”: “Desde jovem ele mostrou uma ardente “consciência social”, ou seja, uma atenção voltada para supostas situações de pobreza ou opressão, e um conseqüente desejo de resolvê-las através de ações, orientadas para a raiz do problema”. Aqui está o ‘mártir social’, e ouvimos a acusação voltando! Infelizmente, os detratores não perceberam, e ainda não percebem, que o Padre Ezequiel foi à fazenda Catuva não em seu próprio nome, mas em nome daquela Igreja brasileira que tinha decidido, com base na fé recebida do Senhor, não se submeter a essa injustiça e tinha tomado sobre si a cruz de seu povo.
Quem o matou?
Nestes casos, especialmente se for um padre, ou há silêncio, ou se defende acusando. Este também foi o caso do Padre Ezequiel (ele foi onde não deveria ter ido, agiu como político e sindicalista, não foi identificado como sacerdote, foi carregar armas, tirou fotos provocativas, etc.). No entanto, algo estava silenciosamente se desmoronando no violento campo dos latifundiários que acusavam a Igreja presente na região de não mais ser fiel ao Evangelho de Jesus Cristo, tendo perdido seu papel espiritual. O fazendeiro, proprietário da Catuva, além dos silêncios que levou consigo para o túmulo, deu mais do que simples pistas a um amigo com quem ele costumava conversar. A princípio, este último havia notado que após o assassinato de Ezequiel, o latifundiário, que costumava frequentar a igreja, havia se retirado de qualquer evento religioso. Depois dos silêncios, vieram as frases incompletas sobre o evento, desde os aspetos menos comprometedores até a admissão de responsabilidade. A que estas frases, que saíram de sua boca, teriam aludido? “Essa não foi uma morte inocente…”. “Havia uma responsabilidade coletiva por trás disso…”. “A fazenda Catuva é a primeira, invadida aquela, a porta permanece aberta para todas as outras…”. Depois, a admissão inesperada: “Eu também dei as ordens para a emboscada”. Além disso, o mediador dos jagunços que atuavam naquela época na fazenda Catuva, confessara de não conseguir entender onde o proprietário encontrasse uma quantidade tão grande e variada de armas! Finalmente, houve outra admissão importante e inesperada. Um descendente de uma grande e violenta família de latifundiários da região de Cacoal, em visita ao túmulo do Padre Ezechiele em Pádua, foi visto chorando e ouvido sussurrar: “Vocês outros nos deram um jovem que estava disposto a fazer o bem, e nós o matamos e o devolvemos a vocês morto”. A testemunha deste evento, que veio para relatá-lo no julgamento diocesano em Ji-Paraná, conclui: “Se pelo menos por esta razão, a viagem valeu a pena. Eu nunca teria imaginado que testemunharia algo assim. Na minha opinião, isto pode ser considerado como o primeiro milagre de Ezequiel: ter causado a conversão deste homem”.
Fama espontânea ou provocada do martírio?
Agora, antes de concluir, a última objeção sobre a natureza da fama de martírio do Padre Ezequiel merece alguma atenção. Para os críticos da fama de martírio do Padre, aqui, não se trata de um sentimento genuíno de admiração do Povo de Deus por seu testemunho de martírio, mas de algo artificial, provocado intencionalmente. E é precisamente a difusão do filme “A casa queimada”, mencionada acima, que explicaria a importância que a figura do Padre Ezequiel adquiriu desde então. Portanto, uma fama não causada por um exemplo de imolação por fé sobrenatural e caridade, mas por uma amplificação mal disfarçada da mídia. Mesmo ficando só na amplificação da mídia, há uma primeira informação a desmentir esta operação. Nenhuma versão do filme “A Casa Queimada” foi jamais feita para o público brasileiro. Em nossa opinião, isto é uma vantagem porque, sem querer diminuir o real talento dos atores, ela é uma reconstrução do martírio decepcionante e muitas vezes imprecisa do ponto de vista histórico.
Entretanto, para aqueles que querem passar do nível da simples mídia para o conteúdo de uma verdadeira fama de martírio, há algo mais. A tese da amplificação nos parece não conseguir captar a rica experiência de fé que a comunidade cristã viveu ao longo de todo o caminho, desde o dia do martírio de Padre Ezequiel (25 de julho de 1985) até hoje (março de 2022). Basta, de fato, verificar os nomes das personalidades envolvidas e que reconheceram no Padre Ezequiel um verdadeiro mártir cristão, um autêntico “testemunho da caridade de Cristo”, para perceber que estamos muito além de um fenômeno mediático. Mencionemos com São João Paulo II toda uma série de cardeais, arcebispos e bispos brasileiros juntamente com todas as suas comunidades (basta pensar na carta de apoio à Causa enviada por 374 bispos brasileiros ao Papa Francisco por ocasião do Sínodo na Amazônia; basta pensar na colocação do Padre Ezequiel entre os grandes evangelizadores do Brasil representados na cruz direita do santuário nacional de Aparecida!) Recordemos também todas as numerosas celebrações e peregrinações ao local de seu martírio, assim como os prodígios obtidos por sua intercessão. Neste ponto, não parece mais possível afirmar que a fita está por trás do aumento da fama de seu martírio. Para ser rigoroso, seria necessário afirmar exatamente o contrário, ou seja, que foi a fita que se beneficiou e não o contrário.
Para resumir, podemos dizer que a morte do Padre Ezequiel foi de fato um ato de amor gratuito, pois ele se colocou ao lado dos mais fracos para alcançar a todos. Certamente um escândalo, pois expressa uma prioridade (começar sempre com as vítimas) mas também uma responsabilidade (estender a mão a todos, inclusive aos agressores). Para falar sem rodeios, os infratores, hoje, precisamente em nome do Evangelho, devemos chamá-los pelo nome de “verdugos perdoados” uma vez que admitem sua responsabilidade. Precisamente por causa do amor de Deus, que se oferece livremente a todos, devemos afirmar sem hesitação que ofendido e ofensor nunca podem ser colocados no mesmo nível, mas sempre no mesmo horizonte de perdão, constantemente concedido por Deus e pela vítima. Padre Ezequiel, nem na vida nem na morte, jamais deixou de dialogar com todos e de gritar sua identidade de sacerdote e missionário interessado preferencialmente nos mais pobres. Uma voz livre e profética que se tornou insuportável e teve que ser silenciada.
Conclusão
Em conclusão, podemos dizer que duas declarações marcam a vida do mártir Padre Ezequiel Ramin e, especialmente, apoiam sua morte. Aos 19 anos, ele escreveu em uma reflexão para o Dia Mundial das Missões de 1971: “Libertemos o homem da fome, da doença, façamos dele um homem livre, testemunhando desta forma a Cristo que está dentro de nós” e aos 32 anos de idade, avançando em direção a Catuva no caminho do martírio, ele respondeu: “É meu dever ir lá. Jesus foi pregado na cruz para nos salvar. Se eu morrer, estarei cumprindo minha missão”. E ele continuou sua jornada para o objetivo: o cume do amor.
Falar hoje de imprudência e desobediência é querer anular o dom de sua vida, orientada pelo amor de Cristo e de seus irmãos camponeses, cujas vidas estavam em perigo extremo. Falar hoje de imprudência e desobediência é um truque, para não querer entender que o Padre Ezequiel preferiu evangelicamente colocar sua própria vida em risco, em vez de abandonar os camponeses pobres e suas famílias ao seu destino sangrento. A partir daquele momento, sua palavra correspondeu exatamente ao seu cadáver crivado de 70 balas na estrada da fazenda Catuva. Não é difícil entender então por que tal coerência e medida abalam nossas táticas ou posições adquiridas. O mártir é sempre contestado antes de ser venerado. Cristo foi o primeiro, e assim será para aqueles que querem seguir seus passos.
Resposta à “Correspondência Romana”