Páscoa da Socioeducação – Projeto Legal
A socioeducação deve ser uma experiência de Páscoa. Páscoa é terremoto.
O percurso não foi fácil, mas foi suficiente para nos convencer cada vez mais que as medidas em meio aberto só podem funcionar se …
Menina participando no Projeto Legal
No dia 28 de março, em plena semana santa, a Dra. Remédios, juíza de Santa Rita, grande parceira na luta da defesa e promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, me anunciou a extinção do processo de L.M. por cumprimento de medida. “Prego batido e ponta virada”, escreveu em sua mensagem deixando transbordar sua alegria. Sua notícia foi como um anúncio de Páscoa. Parabéns a L.M., porque, independentemente da equipe do Projeto Legal, a decisão de “sair dessa” e embarcar numa nova experiência de vida, foi totalmente sua. Foi sua a força que o levou a resistir aos apelos sedutores da criminalidade e a se mudar para outro local deixando para trás tudo aquilo que podia leva-lo a aprontar de novo. L.M. demonstrou que é dotado de uma boa dose de resiliência, qualidade presente em quase todos os nossos meninos e meninas da periferia e que só espera um empurrão para entrar em funcionamento. Importante para ele foi o RAP, estilo musical que utilizou para reler sua história, botar para fora suas dores e ritmar os novos passos.
A extinção de seu processo é final feliz de um caminho de um ano e meio de duração, que começou pela desinternação de L.M. do CSE e seu encaminhamento para o Projeto Legal, em Marcos Moura, a fim de cumprir a medida de Liberdade Assistida Comunitária, segundo a metodologia da Pastoral do Menor. Na época foi um grande ato de confiança da competente equipe da 2ª Vara da Infância e da Adolescência, nesse caso específico do Dr, Henrique, da Dra. Antonieta e Dra. Catarina, que acolheram nosso pedido e entregaram L.C. aos cuidados da família e da equipe do Projeto Legal. Obrigado também à Luciana, que na época era diretora do CSE, e à assistente social do L. que torceram para dar certo.
O percurso não foi fácil, mas foi suficiente para nos convencer cada vez mais que as medidas em meio aberto só podem funcionar se houver, além da equipe técnica, a valorização do orientador voluntário, morador do mesmo território, para ser o “andaime” à disposição do adolescente para que ele tenha suporte necessário à construção de seu projeto de vida. Antes de qualquer curso, os adolescentes precisam de referências positivas que, sem a pretensão de se portar como super-heróis, sem recurso à chantagem e à violência, sem fazer terrorismo, sem moralismos e tentações legalistas, mas, simplesmente como gente de cuidado, consigam transmitir-lhes o gosto pela vida, a importância do cuidado consigo mesmo e com os outros, a beleza de viver com os outros e pelos outros, o desejo de participar e de exercer a cidadania. Essa inclusive deveria ser a função primordial do socioeducador nas unidades de internação. Pena que a adoção da nomenclatura de “agente socioeducativo” tenha prevalecido no cotidiano das unidades, enfatizando através das funções, das reivindicações, das posturas, da linguagem e do próprio vestiário, o papel de agente de segurança em detrimento da dimensão pedagógica.
L.M. atualmente trabalha no galpão da nossa cooperativa de reciclagem (COOREMM) que generosamente acolheu L.M. logo após completar os 18 anos. Ontem, estava feliz. No bazar da própria cooperativa, comprou uma cama e uma mesa e os levou para a casinha que está arrumando com sua namorada ao lado da casa dos pais. O mais bonito ainda foi quando me disse que apresentou o currículo numa outra firma e que estava aguardando retorno. L.M. tem muito que andar, mas nosso papel de acompanha-lo não terminou com o fim da medida, pois a Liberdade Assistida Comunitária cria um laço afetivo tão forte que o adolescente passa a ser parte de uma grande família. Seu nome e aquele dos outros adolescentes que passaram pelo projeto e agora estão inseridos em estágios e empregos, continuam na lista do Projeto Legal
A socioeducação deve ser uma experiência de Páscoa. Todos nós sabemos que Páscoa vem do hebraico PESAH, que significa passagem. Não é passagem desta para outra vida, como infelizmente acontece com multidões de jovens pobres, negros e de periferia. Passagem esta que setores fascistas e truculentos de nossa sociedade saúdam com cínica satisfação. A passagem que a socioeducação deve proporcionar é nessa mesma vida, da invisibilidade à visibilidade, do abandono ao cuidado, da des-cultura da violência à cultura da paz, da desconfiança em todos à confiança em si mesmo e nos outros, da realidade de descarte e marginalização à inclusão crítica na sociedade sem se deixar aprisionar nas engrenagens deste sistema que, hipocritamente, condena a violência da qual o próprio sistema é mandante.
A socioeducação deve proporcionar o retorno do adolescente ou, como em muitos casos, o primeiro ingresso na sociedade, non somente pela porta dos fundos do perverso mercado de trabalho que ainda compra a mão de obra humana em troca de banana, mas pelo ingresso principal da dignidade, da autoestima e da cidadania. A socioeducação deve pôr o adolescente de pé, capaz de andar com suas próprias pernas e de cabeça erguida, em condições de questionar com sabedoria e de se comprometer para ajudar a construir uma sociedade diferente, mais justa, fraterna e inclusiva respeitosamente de todas as diferenças. Na socioeducação tem muita gente que quer fazer isso, mas que deve fazer as contas com a falta e a desvalorização dos recursos humanos, com condições de trabalho precário, com correntes (des)pedagógicas contraditórias com o que está previsto no Sinase, com pessoal que não tem nenhuma identificação com a socioeducação e que usa práticas que acabam com a função pedagógica das medidas socioeducativas, com estruturas obsoletas que se parecem “caixões sociais” onde são amontoados de maneira desumana centenas de adolescentes e jovens. A socioeducação é uma emergência que deve ser priorizada, pois por ela passam centenas de vidas que, por sua vez, influenciam, outros milhares de vidas. Uma boa socioeducação, moldada no Sinase, transformaria as unidades (fechadas e abertas) em “oficinas do oleiro”, belíssima imagem bíblica que indica o laboratório onde cada um pode moldar a matéria prima de sua vida com a orientação de pessoas que tem compromisso com a vida. A Pastoral agradece e incentiva os funcionários que querem fazer a diferença e manifesta sua disposição a somar. Ao mesmo tempo faz apelo àqueles que ainda resistem, para que “se convertam” ao Sinase ou tenham a humildade de “pedir para sair”.
Páscoa é terremoto. É a festa que faz rolar a pedra pesada que fecha o túmulo. É o evento que escancara a entrada de grutas e de cavernas onde a vida está morta, para deixar entrar a luz, o ar, a vida. Espero num terremoto pascal na socioeducação.
P. Xavier, no Projeto Legal
Sonho com o dia em que as mães possam ouvir o mesmo anúncio que as mulheres ouviram na manhã do dia de Páscoa: “Não procurem entre os “mortos” aqueles que estão vivos. Seus filhos não estão mais aqui. Não estão internados. Estão em suas casas, em suas comunidades, atendidos por políticas públicas emancipadoras, acolhidos e orientados por técnicos e voluntários comprometidos, amados e cuidados pela comunidade, exercendo com protagonismo a cidadania. Sonho com um grande mutirão pascal e o doce canto do alvará de soltura para a verdadeira liberdade.
Feliz Páscoa para todos/as
Pe. Saverio Paolillo (pe. Xavier)
Misisonário Comboniano
Pastoral do Menor e Carcerária
Cedhor/PB
Fotos: Sem Fronteiras e Arquivo Comboniano