
Pobres e Justiça são temas caros à autêntica tradição cristã
É só chegar a Campanha da Fraternidade que chovem críticas de todos os lados, sobretudo de grupos ultraconservadores que acham que abordar assuntos sociais seja uma heresia. Falar de gente que passa fome escandaliza mais do que a própria fome, sobretudo quando se abordam as causas dessa terrível tragédia que envergonha todos aqueles e aquelas que ainda guardam um pingo de sensibilidade humana. O pior de tudo é constatar a tentativa criminosa e imoral de negar o problema ou de responsabilizar os/as próprios empobrecidos/as, mas o mundo real, por quanto se tente negá-lo ou disfarçá-lo, fala mais alto do que o mundo das ilusões que eles frequentam com sua imaginação. É bom esclarecer uma vez por todas que faz parte da tradição da igreja, bem antes das “ideologias esquerdistas”, ser solidários/as com os pobres, buscar a justiça, promover a solidariedade, questionar o uso egoísticos dos bens e incentivar a partilha dos mesmos.
Já bastaria a Sagrada Escritura para fundamentar essa tese. Mas, é bom também recorrer aos textos dos Santos Padres da Igreja, que, por terem vivido nos primeiros séculos da era cristã, além de serem reconhecidos como os imediatos sucessores dos apóstolos, não podem ser acusados de “esquerdismo”. Vejam alguns exemplos daquilo que ensina a autêntica tradição cristã:
“O uso dos bens é determinado pela necessidade, que pode ser satisfeita com muito pouco. Deus nos deu a possibilidade do uso, mas apenas dentro dos limites do necessário. É, portanto, um absurdo que apenas uns poucos vivam entre delícias, enquanto muitos se acham na miséria”. (São Clemente de Alexandria, +215 – O pedagogo)
“Aquele que despoja um homem de suas vestes recebe o nome de saqueador. E aquele que, podendo fazê-lo, não veste a nudez do mendigo, merece por acaso outro nome? Ao faminto pertence o pão que você retém. Ao homem nu, o manto que você guarda até nos seus cofres. Ao que anda descalço, o calçado que apodrece em sua casa. Ao miserável, o dinheiro que você guarda escondido”. (São Basílio Magno, +379 – Homilia 6, 6-8)
“Aqueles que não compartilham o que receberam causam cruelmente a morte de seus próximos, porque todos os dias matam todos os que morrem de pobreza, negando-lhes socorro e apenas acumulando riquezas para si próprios. Quando damos aos pobres algo de que necessitam, não estamos dando o que é nosso, mas estamos desenvolvendo o que lhes pertence. Estamos pagando uma dívida de justiça, e não realizando uma obra de misericórdia”. (São Gregório Magno, +604 – Regra Pastoral)
“Quem quiser dar lugar ao Senhor em suas vidas deve se alegrar não com a posse de bens materiais, mas em compartilhar bens comuns. Os primeiros cristãos transformaram em bens comuns seus bens individuais. Por acaso perderam o que consideravam seus bens? Não. Se seus bens continuassem como propriedades exclusivas, cada um teria apenas o que era seu. Mas, quando transformaram em bens comuns seus bens individuais, cada um passou a ter como seus os bens que eram dos demais”. (Santo Agostinho, +430 – Comentário ao Salmo 131)
“Como uma fonte fornece água sempre mais pura quanto mais pessoas dela se servem, enquanto a água parada apodrece se dela não se faz uso, assim também acontece com a riqueza que jaz inútil. Se ela, porém, for movimentada, então torna-se frutuosa, útil para a comunidade”. (São Basílio Magno, +379 – Homilia sobre a avareza, 4-5)
“Vocês acham que a humanidade para com o próximo não é necessidade, mas um ato opcional? Que não é uma lei, mas apenas um conselho? Eu mesmo desejaria que assim fosse e assim eu passaria a pensar. Mas temo o lado esquerdo, os cabritos e as imprecações do Juiz (cf. Mt 25, 31-46). Isso mesmo: não foi porque roubaram, cometeram sacrilégios ou adulteraram, nem porque cometeram qualquer outro ato proibido que esses pecadores foram condenados. Foi porque não cuidaram de Cristo na pessoa dos pobres”. (São Gregório de Nazianzo, +390 (Homilia 24 sobre o amor aos pobres)
“Nós construímos casas para morar, não para trazer-nos glória. O que ultrapassa a necessidade é supérfluo e inútil. Experimente calçar um sapato maior que o pé: você não o suportará, porque ele o impede de caminhar! Assim também uma casa maior do que você precisa vai atrapalhá-lo na sua caminhada para o céu”. (São João Crisóstomo, +407 – Homilia sobre as estátuas, 2, 5-6)
Como podem constatar, a defesa intransigente da equidade socioeconômica não é uma heresia, mas um elemento constitutivo da fé cristã. Não é um detalhe secundário ou um desvio de conduta, mas um músculo essencial do coração da tradição cristã. Sem justiça não há autêntica conversão, pois o coração não consegue bater segundo o ritmo de um Deus que ama preferencialmente os pobres. Quem está cansado da Igreja porque fala o tempo todo de pobres e de justiça social deve estar cansado também de Jesus de Nazaré e até de Maria, pois são dela as palavras do Magnificat onde ela, impulsionada pelo espírito Santo e não por ideologia esquerdista, louva a Deus, pois entre as muitas maravilhas por Ele realizadas, “derrubou os poderosos dos tronos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazia os ricos”. Esse texto não pertence a nenhum livro de esquerda, mas é trecho do Evangelho de Lucas segundo a tradução da Bíblia da Editora Ave Maria.
Os cristãos não precisam de outros autores de outras ideologias para embasar seu compromisso em defesa da justiça e da paz. O Evangelho e a autêntica tradição da Igreja já bastam.
(Padre Xavier Paolillo, missionário comboniano)