Por todas as Crianças em Gaza
Introdução
Nessa minha contribuição, quero fazer um olhar retrospectivo de como o mundo contemporâneo tem desprezado sistematicamente suas crianças e como nós adultos dessa triste época, deixaremos um mundo pior do que recebemos dos nossos ancestrais. Estes, por sua vez, não nos fizeram herdeiros de um mundo fácil.
1. Crianças, alvo e inimigo de guerra
Essa dificuldade de construção de uma ética coletiva generosa para o futuro, tem em contrapartida, um acúmulo do desprezo pelas vidas consideradas descartadas, especialmente das que não são dos países membros da OTAN, dos Estados Unidos e Canadá. Desgraçadamente se perdeu todo sentido de empatia e de consideração da Terra como a Casa Comum. Das muitas violências e violações de direitos que assistimos em Gaza, vemos negados aos palestinos, direitos internacionais de assistência, de modo especial às crianças, que além de fazerem parte de um contingente que ainda não tiveram a merecida atenção, são tratadas como alvos e inimigas de guerra.
O mais assustador no atual conflito é o fato das vítimas civis não terem acesso à maior parte dos direitos de socorro e proteção que são oferecidos às pessoas que sofrem as graves consequências do conflito. O extermínio delas é justificado por uma leitura dita religiosa e, ao mesmo tempo, propagandística do “destino manifesto de Israel” que encobre de sombras e morte aos que são considerados seus inimigos. Seus muitos crimes e violações na região de Gaza são considerados ainda dentro do princípio do “direito de defesa”. E o sustentáculo disso está no incondicional apoio dado pelos Estados Unidos e pelos países da OTAN. De tudo isso vem o questionamento: quantos mais precisarão morrer, especialmente crianças, para que o suposto “direito de defesa” de Israel seja “saciado”.
Desde outubro de 2023, crianças palestinas não vão à escola, perdem pessoas queridas, sobrevivem entre escombros e as que são socorridas pela ajuda humanitária vivem um dia a dia incerto, como os próprios destinos dessa guerra terrível que acarreta a Israel a sua completa desumanização como Estado e faz de seus cidadãos civis, herdeiros dos encargos da terrível herança de terem que lidar com as consequências do conflito, sendo vistos mundialmente como membros de uma nação genocida.
Nessa ação que descarta as vidas das crianças, os senhores das armas e os mercadores das guerras lucram exponencialmente. Devido à Pandemia, o curso de diversos conflitos havia sido adiado. E tal suspensão garantiu por um breve tempo poupar as vidas, que o COVID não levou até o avanço das vacinações. Logo após o fim da emergência mundial, o mercado das armas e das guerras voltou a crescer e os atuais conflitos são também uma forma exponencialmente eficaz de acumulação de riqueza de grupos que enriquecem com a desgraça humana.
2. Crianças, violência e desprezo global
A partir dessas considerações, se fará uma reflexão de como as crianças vêm sendo tratadas globalmente na atualidade e como isso construiu um “acúmulo de violência” que embasa o desprezo que se tem pelas vidas infantis nas guerras do planeta. Aqui se enfatizam as dores das crianças palestinas que recebem uma atenção aquém de outras semelhantes a elas que são atingidas por outras guerras que acontecem neste exato momento, enquanto escrevo.
A modernidade tem custado caro às nossas crianças. Durante a Revolução Industrial, no século XIX, a força de trabalho infantil foi fundamental para o desenvolvimento da indústria. Faziam os mesmos produtos dos adultos, porém como não eram consideradas pessoas plenas recebiam os piores salários, eram invisibilizadas e quando vistas, eram para as situações abusivas, porque se acreditava que a infância era algo “sem consistência” e que as violências sofridas nessa etapa seriam “apagadas” pela memória que amadureceria na vida adulta.
O mundo no século XX marcado pela expansão do sistema capitalista industrial, pelo enquadramento dos continentes africanos como colônias, áreas de influência e protetorados da Europa Ocidental, tinha seus trabalhadores submetidos a regimes de contrato aviltantes e que, à sombra dos mesmos, incluía a força da mão de obra infantil.
3. Questão linguística e jurídica
No campo linguístico vários foram os termos para criar diferenciações entre as crianças, de modo especial, as não brancas, alvos centrais da espoliação capitalista no mundo contemporâneo. Dentre os diversos termos, para aqueles que são de língua latina, existe o chamado “menor” ou “aprendiz”. Essas designações surgiram fruto de pressões internacionais por conta do número elevadíssimo de vítimas infantis nas guerras coloniais e nas que ocorreram na Europa, no primeiro e no segundo conflito mundiais.
Amparadas por legislações que ainda legitimavam a desigualdade e as hierarquias dos infortúnios no mundo do trabalho, os que eram considerados “menores” perderam qualquer consideração de serem vistos como crianças e adolescentes porque por um lado, trabalhavam como adultos, mas por outro, eram inferiorizados por ainda não o serem.
4. Meninos Soldados
Junto com a imensa desconsideração do trabalho infantil que segue em curso, apesar das diversas convenções internacionais que ensejam legislar sobre essa questão, há o recrutamento da força infantil nas guerras contemporâneas, os chamados “meninos soldados”. Largamente utilizados em outros contextos históricos, o aumento considerável do uso militar de meninos chegou a níveis exorbitantes na contemporaneidade.
A princípio, sob alegação de baixas consideráveis no contingente militar masculino adulto, o uso ampliado no mundo atual de meninos recrutados para exércitos e atividades criminais aponta o quanto ainda diversas organizações, grupos paramilitares e diversas empresas têm como uma das suas bases de enriquecimento macabro, a exploração e a desqualificação das crianças.
5. Acumulação de males na Palestina
Na atual guerra de Israel contra a Palestina são os pequeninos as maiores vítimas. Assim como elas, os adultos palestinos não têm seu direito à vida reconhecido. Hospitais seguem sendo violados desde o ano passado, prédios civis bombardeados impiedosamente e os deslocados que se encontram na fronteira do Egito, que não lhes abre a porta para o refúgio, assistem e também são vítimas horrorizadas do bombardeio israelense na fila do socorro humanitário, ferindo uma convenção mundialmente reconhecida. Mesmo em terríveis conflitos em outros espaços, como na África, o socorro humanitário sempre foi considerado fundamental.
As crianças palestinas são humanas, da nossa espécie, as herdeiras da Terra como todas as demais de todos os continentes. As cortinas de fumaça de uma justificação “ religiosa” da presente guerra, condenam esses pequeninos ao completo abandono e ao extermínio. Nenhum discurso de nenhuma religião justifica hoje, pelas convenções internacionais de justiça, o aniquilamento de qualquer ser humano, sobretudo dos infantes.
6. Ainda há lugar para a Esperança?
Termino com uma lembrança que é tão cara aos praticantes das Religiões Afro Brasileiras, que são os Orixás Crianças, os Erês. Eles são em si tudo de sublime, os grandes curadores e se bastam em si mesmos. Não há necessidade de serem adultos, a divindade se realiza de forma infantil. Recordo também como em outras religiões, as divindades em condição infantil trazem esperanças tão profundas de cura do mundo.
A promessa poética e profética dos deuses crianças, nos lembra que os realizadores da bem aventurança da transformação planetária somos nós, os adultos de hoje. Que não sejamos tragados pela indiferença e que exijamos o fim das violações em Gaza. Que não permitamos o holocausto dos nossos pequeninos! Que a vida deles não seja imolada pelos mercadores da guerra e da morte! Uma criança palestina que morre é um dia a mais que caminhamos para a nossa completa desumanização. Genocídio jamais, nunca mais!
Patricia Teixeira Santos. Professora Associada de História da África da Universidade Federal de São Paulo, pesquisadora colaboradora do CITCEM-UP (Portugal), LAM (Instituto de Ciências Políticas da Universidade Bordeaux (França) e do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Dehli (Índia).