Procura reconciliar-te primeiro com o teu irmão
Precisamos admitir com absoluta sinceridade que a “violência”, em todas as suas formas e dinâmicas, não é um evento acidental ou um fenômeno passageiro, mas o paradigma dominante da existência humana. Tornou-se a ferramenta mais utilizada para resolver os conflitos, “fazer justiça com as próprias mãos” e alcançar seus próprios interesses. Anda livremente pelas ruas de nossas cidades e as trilhas de nossos campos. Tem direito de cidadania em nossas casas, nos empregos, nas religiões, nas relações interpessoais, nos estádios, nos noticiários, no trânsito e, infelizmente, nos espaços destinados à educação formal. É assunto principal dos nossos estudos. Nas salas de aula, exceto raríssimas exceções, se fala mais dela do que dos tempos de paz. Os principais protagonistas da história apresentados aos jovens alunos são os heróis de guerra e não os construtores de paz. Até quando não se chega a vias de fato, é ela que manda e regulamenta as relações interpessoais e internacionais através da desconfiança, o medo e a ameaça. Ninguém se sente seguro. Esta sensação de insegurança brota da desconfiança no outro, sobretudo no desconhecido. Rótulos como adversário, inimigo, opositor, suspeito… prevalecem sobre os conceitos de fraternidade e sororidade. Nos supostos períodos de paz, há uma insana corrida armamentista. A produção de armas não para e o comércio cresce assustadoramente. O relatório, que levanta anualmente quanto cada país gastou na área, apontou um recorde de US$ 2,2 bilhões (cerca de R$ 10, 9 bilhões) em gastos mundiais na área de Defesa em 2023, um aumento de 9% na comparação com 2022. E indica que essa marca deve ser batida em 2024, tomando como base os recursos já reservados para orçamentos de vários países este ano (G1). A ideia de fundo é que a paz só é possível preparando-se e equipando-se para a guerra. Essa lógica equivocada é desmontada pela realidade. Os fatos demonstram que há uma relação diretamente proporcional entre armamento e violência. Mais armas, mais violência e guerra.
O barulho das bombas na Ucrânia e no Oriente Médio trouxeram ao pé dos ouvidos do mundo não só o clamor das populações envolvidas neste conflito, mas também o grito de dor dos povos de conflitos esquecidos. Todas estas guerras estão acontecendo porque o mundo da globalização tão decantada continua dividido em blocos que buscam ampliar cada vez mais sua área de influência para impor seu próprio império. Há em ato, como diz Papa Francisco, uma Terceira Guerra Mundial em pedaços. Apesar de toda conversa a respeito da autodeterminação dos povos e das nações, continuamos sendo peças de um xadrez onde uns poucos contendentes, fortes de seu potencial bélico, nos movimentam conforme seus interesses até dar xeque mate no adversário. O modelo de globalização que nasce do paradigma da violência só está interessado em escancarar as portas do mercado e dos centros financeiros, mas mantém rigorosamente fechadas as portas das casas. Só os capitais podem se movimentar livremente de um lado para o outro do mundo, enquanto os seres humanos, sobretudo aqueles que não têm capital, são rechaçados. Enquanto o dinheiro encontra acolhida nos braços abertos do mundo financeiro, os pobres afundam no Mediterrâneo. Para o dinheiro foram até criados “paraísos fiscais”, enquanto para a maioria dos seres humanos se abrem as portas do inferno da miséria, da fome e da guerra.
O pior de tudo é constatar que até as religiões entram em guerra. Às vezes para justificá-la, outras vezes para abençoá-la, outras vezes ainda como iniciativa em defesa dos interesses de “deus”. Optei pela minúscula, pois um deus assim não passa de um ídolo à imagem e semelhança dos senhores da guerra. Estes fazem da guerra uma medida profilática necessária para “limpar” o mundo de pessoas “não gratas” e “comportamentos desviantes” acabando com os pecadores que os promovem. Em nome do “deus da guerra” aliado com o “deus mamona”, estão sendo praticados o genocídio de inteiros povos. Assim, a religião se transforma em terrorismo, perversidade que atribuímos quase sempre aos outros, sem pensar que ideias como estas circulam também dentro de igrejas cristãs. Não sei de onde alguns cristãos defensores das armas e incentivadores do ódio tiram essa imagem distorcida de Deus. Pode até acontecer que alguns trechos do Antigo Testamento, lidos fora do contexto e sem a luz de Jesus de Nazaré, induzam ao erro, mas uma leitura atenta dos textos bíblicos desautoriza esta visão. É impressionante constatar que em certos ambientes cristãos Jesus e seus discípulos/as “são pessoas não gratas”. O Evangelho é censurado. Prefere-se o Antigo ao Novo Testamento. No lugar de buscar a identificação com Jesus, prefere-se a identificação com atitudes equivocadas de personagens bíblicos veterotestamentários. Como alguém disse recentemente, algumas lideranças políticas que fazem questão de salientar uma “investidura religiosa”, assumem como modelo o rei Davi, não na melhor fase de sua vida e de seu reinado, mas o tirano que nutre uma paixão doentia por Betsabá, a conquista com a força, a violenta e manda matar o marido. Trata-se do paradigma do “predador ungido”, a forma mais perversa e animalesca de tirania, pois é supostamente revestida de autoridade divina. A Palavra não deixa dúvidas: Deus abomina a guerra. Não tolera a violência. O profeta Ezequiel diz isso claramente: “Será que eu tenho prazer na morte do ímpio? Não desejo, antes, que ele mude de conduta e viva? Mas se o justo se desviar de sua justiça e praticar o mal, imitando todas as práticas detestáveis feitas pelo ímpio, poderá fazer isso e viverá? Da justiça que ele praticou, nada será lembrado” (Ez 18, 21-28). A violência para as pessoas que se dizem cristãs é DESVIO DE CONDUTA. Contradiz totalmente o Evangelho. Afasta da prática de Jesus de Nazaré. Deus detesta a violência até aquela justificada para corrigir o “ímpio”. A justiça de Deus é o exercício de Sua Misericórdia, que prevalece também na hora de corrigir. O mal praticado pelos outros não nos dá o direito de nos tornarmos cruéis. Deus espera de seus filhos e filhas fraternidade e sororidade. À luz de sua justiça, que não tem nada a ver com vingança, é condenável toda ação que visa matar o/a outro/a não só fisicamente, mas também moralmente, psicologicamente, verbalmente e afetivamente. A violência externa é sinal da eliminação interior do outro. Nasce quando se exclui a outra pessoa do próprio coração. É por isso que, ao paradigma excludente da violência, precisa substituir o “paradigma do cuidado”, que outra coisa não é que abrir o coração para a acolhida e ao amor. “Procura reconciliar-te primeiro com teu irmão”, diz Jesus (Mt 5,20-26). É interessante reparar a postura do Mestre que teima em chamar de irmão até quem faz maldade e pratica injustiça. O mal que existe no mundo e que, infelizmente, sai do coração humano não pode acabar com a dimensão humana da fraternidade e sororidade. A perda de fraternidade é diretamente proporcional com a desumanização. O caminho da Quaresma é exitoso se nos ajuda a extirpar o ódio e a violência do nosso coração. O coração que ama como Deus ama é o melhor ato de culto ao Deus cristão. Se nosso coração não funciona assim, procuremos logo em Jesus a cura antes que seja tarde demais. (Pe. Xavier Paolillo, missionário comboniano)