Quem são os verdadeiros deficientes em nossa sociedade?
Conheci o Marcelinho nos idos dos anos 90. Estávamos em um evento da igreja. Fiquei curioso para saber quem estava no centro daquele grupinho que conversavam animadamente e as gargalhadas ocupavam todo o salão. Ali estavam pessoas da Paróquia, das comunidades de base e haviam algumas que eu não conhecia e o Marcelinho era uma dessas pessoas. Para minha surpresa, quando todos se levantaram, ele foi o único a permanecer sentado. Sentado em sua cadeira de rodas. Alguns que estavam na rodinha tiveram os seus nomes chamados pelo organizador daquele evento e mais uma vez, fui surpreendido ao ver que o Marcelinho foi o último a ser convidado para compor a mesa e ao conduzir até o tablado, foi aplaudido de pé por todos, inclusive por mim. Uma rampa improvisada permitiu que Marcelo se colocasse por detrás da mesa e ao centro. Ouvimos uma breve saudação e o tema daquele encontro foi apresentado: Por uma sociedade acolhedora e promotora de oportunidades para os deficientes.
O termo deficiente nos remete sempre a algo ou alguém inferior, incapaz, de pouca importância. Receber o diagnóstico ou ouvir de quem amamos que somos portadores de alguma deficiência provoca em nosso íntimo muitos sentimentos negativos, depreciativos. Ali estavam pessoas com deficiência motora, de fala e de audição, de visão, enfim, pessoas que se sentiam representadas pelas palavras e atitudes do Marcelinho.
Aquele espaço foi se tornando um lugar único, mas de pessoas diversas. A cada frase de efeito, a cada relato de superação emocional, psicológica e até física, os aplausos eram retumbantes. Ecoava para fora daquele espaço. Portadores de deficiência mental também aplaudiam, não porque estavam compreendo o que estava sendo dito, mas o sentimento, o espírito que pairava naquele lugar e que envolvia a todos ali era provocador, estimulante.
O evento chegou ao fim. Perguntas ainda eram feitas por quem estava na primeira fila da plateia. Alguns que estavam compondo a mesa já se despedia de amigos e conhecidos. Tinha um grupo que esperava por uma oportunidade para apertar as mãos do Marcelinho. Vi um casal de deficientes visuais, que se apoiavam e distribuíam sorrisos, caminhando lentamente até a porta do salão. O som das rodas se misturava com as gargalhadas de alegria e o murmurinho daqueles que diziam que outros encontros como aquele precisavam acontecer.
Encontrei com Marcelinho algumas vezes. Em reuniões de igreja, em terras indígenas, na casa amigos e amigas em comum. Nunca ouvi ele reclamar da escada, o terreno lamacento, das pedras do caminho. Marcelinho, já naquele tempo, não media esforços para falar sobre a necessidade de todos e todas escutarem as pessoas com deficiência, com necessidades diferentes do padrão, do comum. Pessoas capazes, comprometidas, mas portadoras de algo que irão carregar por toda a vida. Essas pessoas aprendem a conviver conosco, elas superam suas limitações, elas buscam a convivência comum. E nós? Não seriamos nós os portadores de deficiências? Deficiência de visão por não enxergar que existe uma pessoa por detrás daquela situação. Deficiência motora quando não conseguimos caminhar ao lado das pessoas que rotulamos como deficientes. Deficiência de fala porque somente somos capazes de falar sobre nós e não engrossamos as falas delas. Deficiência de coração já que só conseguimos amar quem é semelhante a nós.
Hoje, convivo com muitos “Marcelinhos”. Já se passaram 30 anos desde aquele meu primeiro encontro com o tema Pessoas Com Deficiência. Muitos avanços foram conquistados, seja por meio de leis, seja pela conscientização daqueles que se consideram não portadores de deficiência. Ainda temos muito o que aprender com eles. Muito o que fazer com eles.
Por Tranquilo Dias,leigo missionário comboniano