
Ser Biopsicossocioespiritual: Movimento Saúde Mental une fé e ciência no acolhimento da população de Fortaleza
Para além do muro azul que se destaca na rua Dr. Fernando Augusto, no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, o vento passeia entre as folhas das árvores e mistura-se ao som dos sinos, compondo uma melodia silenciosa que acolhe quem chega. Ao centro, a Palhoça Terapêutica ergue-se redonda e aberta, com seu teto de palha filtrando a luz do sol. As cadeiras coloridas estão espalhadas pelo espaço, esperando os que chegam em busca de cura, respiro ou apenas uma pausa do mundo lá fora. Aqui, entre o farfalhar das plantas e o aroma de óleos essenciais, o tempo parece desacelerar, convidando corpo e alma a se reencontrarem.
Essa é a porta de entrada para o Movimento Saúde Mental (MSM). A organização surgiu a partir da atuação do psiquiatra e padre Rino Bonvini, missionário comboniano, no Grande Bom Jardim. Diante do adoecimento psicológico e da vulnerabilidade social da população, ele, junto a lideranças locais, criou espaços de escuta e acompanhamento terapêutico, promovendo a autoestima e, nos casos necessários, encaminhando para atendimento psiquiátrico.
Com o passar dos anos, o MSM cresceu e estruturou diversos espaços de cuidado, como a Palhoça Terapêutica, que oferece gratuitamente à comunidade Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), incluindo massoterapia, reiki, argiloterapia, auriculoterapia, biomagnetismo e ventosaterapia. Além disso, nos grupos terapêuticos, são praticadas atividades como aromaterapia, yoga, biodança, meditação, arteterapia e reflexologia, fortalecendo a saúde e o bem-estar da comunidade. “Através das PICs, oferecemos formas alternativas de cuidado, promovendo autonomia e prevenindo o uso indiscriminado de medicamentos”, diz Rino.
Em frente à Palhoça, do outro lado da rua, estão o polo de gastronomia social do Movimento: o Giardino Buffet e a Escola de Gastronomia Autossustentável. No andar superior, acessado por um lance de escadas, encontra-se a Casa Ame, sigla para arte, música e espetáculo, um dos pontos de cultura do Grande Bom Jardim.
Foi nesses espaços que Ana Kézia sentiu suas dores acolhidas. Ao chegar de Goiânia com suas duas filhas, foi aconselhada por sua tia, residente em Fortaleza, a abrir um prontuário no CAPS Comunitário Bom Jardim – unidade de atendimento psicossocial que funciona em cogestão com o MSM. Ela conta que o psiquiatra da instituição lhe deu um conselho valioso: só o remédio não resolve tudo. Sugeriu que participasse das terapias na Palhoça e, se possível, aproveitasse todas as atividades oferecidas. Kézia seguiu a dica e passou a frequentar a programação intensamente, de segunda a sexta, manhã e tarde. “Até então, desde criança, eu só pensava em morrer, e aqui no Movimento, agora eu quero é mais do que viver”, conta.
Quando chegou à Palhoça, segundo diz, não sabia o que era amor próprio. O contato com as terapias mudou sua percepção sobre si mesma. Atualmente, com 32 anos, já não usa mais medicação para depressão e ansiedade, mas continua frequentando a Palhoça, ainda que com uma frequência menor. Gosta de fazer massoterapia, alugar livros na biblioteca comunitária da Casa Ame e participar dos cursos da EGA. Kezia já concluiu um curso do Gastronomia e Terapia e está no seu segundo. Começou a trabalhar com bolos aplicando o conhecimento que adquiriu. Além disso, está estudando e mantendo constância na academia. “Hoje em dia eu tenho saúde mental, e, além de cuidar da mente, aprendi a cuidar do corpo como um todo.”
Ana Kézia, como tantos outros que atravessam o muro azul, encontrou ali um recomeço. Na harmonia entre as folhas e os sinos, no acolhimento das terapias, na força de um coletivo que transforma vidas, ela descobriu algo que antes lhe parecia inalcançável: a vontade genuína de viver.
FORTALECIMENTO DA MISSÃO COMBONIANA EM FORTALEZA
A história do MSM está intrinsecamente ligada à caminhada de Rino Bonvini, como missionário comboniano. Sua primeira ida à Fortaleza foi em 1993 para participar de um congresso. Na ocasião, visitou a casa que hoje é a sede do Movimento Saúde Mental (MSM), então ocupada por seus confrades que trabalhavam na área pastoral do Bom Jardim, na evangelização de comunidades. Rino lhes apresentou o embrião que viria a ser o MSM: “uma proposta de trabalho social orientado com a questão da saúde mental”.
Em 1996, Rino retornou à cidade destinado a tocar o projeto para frente. Desde então, o MSM vem desenvolvendo a metodologia da Abordagem Sistêmica Comunitária (ASC), tecnologia socioterapêutica multidisciplinar e de múltiplo impacto que atua na prevenção e na transformação do sofrimento psíquico e existencial, a partir do trabalho com as comunidades.
Criada e desenvolvida na organização, a ASC abre espaço para que a própria comunidade seja protagonista do processo de transformação social e cultural do contexto onde está inserida, a chamada Autopoiese Comunitária. Além deste pilar, outros dois caracterizam a tecnologia: a Trofolaxe Humana, que oferece novos caminhos de cura integrados à evolução biopsicossocioespiritual por meio do fortalecimento de laços afetivos e sociais entre as pessoas e a comunidade; e a Sintropia, tendência natural para o autoaperfeiçoamento e equilíbrio sistêmico.
A Abordagem ainda ajuda a distinguir se um transtorno psiquiátrico exige intervenção farmacológica ou não. “Muitas vezes, prescrever ansiolíticos é mais fácil”, diz Rino, ao chamar atenção para a psiquiatrização da saúde mental. Para ele, a ASC “é uma forma de prevenir o uso de psicotrópicos, ou seja, o uso de medicamentos que atuam no cérebro, além de facilitar o desmame para quem já faz uso desses remédios. Um dos principais problemas no Brasil é o uso indiscriminado de psicotrópicos. As pessoas tomam como uma forma de lidar com um distúrbio que poderia ser tratado sem o remédio, por meio de práticas terapêuticas”, completa, destacando que esse cenário pode ser contornado com as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde e com a medicina alternativa, com remédios naturais e fitoterápicos, que inclusive fazem parte da tradição da cultura brasileira.
Dentro do Movimento Saúde Mental, a dimensão biopsicossocioespiritual conecta a ciência e a religião ao tratar momentos de crise e problemas psíquicos integrando as diferentes crenças e a força que vem da espiritualidade das pessoas no processo de cura. A este respeito, padre Rino ressalta que “nós, combonianos, somos católicos, mas acolhemos pessoas que pertencem a outras religiões. Nossa opção preferencial pelos mais pobres é orientada por Cristo, o caminho, a verdade e a vida. Queremos que todo mundo tenha vida em abundância”.
Redação por Yasmin Louise e Richardson Pereira
Edição por Milene Madeiro