Será Que Sou Eu?
A atmosfera de festa que respirávamos ontem na casa de Betânia contrasta fortemente com o ar de tristeza que se respira no Cenáculo hoje (Jo 13,21-33.36-38). Ao gesto de amor de Maria, que unge com ternura os pés do Mestre, sucede o sentimento de decepção provocado pela traição de um dos Doze apóstolos. O evangelista João conta que, enquanto jantavam, Jesus, profundamente comovido, disse a seus discípulos: “Em verdade eu vos digo, um de vós me entregará”.
As palavras de Jesus, pronunciadas à queima-roupa durante a ceia pascal, deixam todos desconcertados. Os discípulos olham uns para os outros, pois não sabem de quem Jesus está falando. O evangelista Mateus, no texto proposto na liturgia de amanhã, relata que, um por um, começam a lhe perguntar: “Senhor, será que sou eu?” (Mt 26,22). A pergunta intriga. Quem tem consciência limpa não tem nada a temer. Então, por que todos são tomados pela dúvida de ser o traidor de Jesus? Talvez porque cada um deles tenha algo a esconder. A reação do grupo é uma admissão de culpa. É a confissão de uma fragilidade que acontece com todo mundo. A traição é muito mais comum do que se pensa. É companheira inseparável da natureza humana. Todos, de uma forma ou de outra, temos alguma história de traição para contar.
Penso, nestes dias, na experiência de traição sofrida pelas famílias de Marielle Franco e Anderson, ao descobrirem que o delegado que os abraçou, prometendo prender logo os assassinos de seus entes queridos, fazia parte do esquema que decretou e executou o assassinato deles. Apesar de todo o nosso empenho e generosa dedicação ao projeto de Jesus, cada um de nós contabiliza momentos de cedimento às tentações, distanciamento de Sua prática, desvio do Seu caminho e afastamento de Seus ensinamentos.
É bom nos lembrarmos disso quando, como Pedro, tomados por um inconsistente ímpeto de generosidade, lhe prometemos aquilo que não podemos cumprir ou, do alto da nossa arrogância, nos sentimos no direito de malhar “Judas” em praça pública, como se fôssemos melhores do que ele. Por quanto o neguemos ou nos envergonhe, temos que admitir que todos nós, por causa de nossa fraqueza, passamos pela experiência da ilusão do ser humano, que crê que consegue ser verdadeiramente livre… libertando-se de Deus sem se dar conta de que, eliminando-O da nossa vida, a mergulhamos nas trevas da noite, na escuridão da falta de sentido, assim como acontece com Judas. Judas é nosso irmão. Tem tudo a ver conosco.
“Não vos envergonheis de assumir esta irmandade – disse num memorável sermão Pe. Primo Mazzolari ao comentar este trecho do Evangelho. Eu não me envergonho, porque sei quantas vezes traí o Senhor; e acredito que nenhum de vós deve envergonhar-se dele. E ao chamá-lo irmão, estamos usando a mesma linguagem do Senhor. Quando recebeu o beijo da traição, no Getsêmani, o Senhor respondeu-lhe com aquelas palavras que não devemos esquecer: ‘Amigo, com um beijo trais o Filho do homem!’. Amigo! Esta palavra, que diz a infinita ternura da caridade do Senhor, faça-nos compreender por que neste momento eu o chamei irmão. Jesus dissera no Cenáculo não vos chamarei mais de servos, mas amigos. Os Apóstolos se tornaram os amigos do Senhor: bons ou maus, fiéis ou infiéis, generosos ou egoístas, permanecem sempre os amigos de Jesus. Nós podemos trair a amizade com o Cristo, mas Ele nunca nos trai. Considera-nos seus amigos mesmo quando não o merecemos, também quando nos revoltamos contra Ele ou quando o negamos. Diante de Seus olhos e dentro de seu coração nós somos sempre os amigos do Senhor”.
Durante a Semana Santa, o destino terreno de Jesus será decidido pelo beijo do traidor. Mas, pela infinita bondade de Deus, aquela traição, mesmo impregnada da perversidade do pecado, torna-se o meio pelo qual Jesus entrega a vida por nós e o Espírito de amor é enviado a nós para salvar-nos. Enquanto é traído, Jesus diz que é glorificado. É glorificado porque na cruz revela o amor do Pai até para com seus inimigos. É verdade que Judas se perdeu, mas é também verdade que o Senhor veio para quem está perdido. Se Judas tivesse pedido perdão, hoje o lembraríamos como santo. Pois é assim que é feito o amor de Deus. Ama até quem o trai. Através da traição do discípulo, Jesus revela a seriedade e a profundidade de seu amor. Até Pedro precisa ser salvo de sua arrogância, da sua maneira ingênua e perigosa de avaliar a si mesmo. Grita a Jesus que está disposto a dar a vida por Ele. Mas o Mestre, sem meios termos, o coloca diante da dura realidade de sua fragilidade: “Em verdade te digo, o galo não cantará antes que me tenhas negado três vezes”. É assim que começa o definitivo dom de Deus para cada um de nós. A traição condena Jesus à morte, mas não consegue acabar com o amor de Deus que se revela através do Filho na Cruz. O amor de Deus vive apesar de tudo e para sempre. Diante de tudo isso, não nos comportemos como simples expectadores ou, pior ainda, com indiferença. Comportemo-nos como protagonistas ativos. Aquele pedaço de pão molhado no vinho que Jesus oferece a nós durante a Ceia é sinal da necessária partilha da Sua Vida, da plena comunhão.