Na história missionária de Comboni, um ponto de virada foi o encontro dele com uma criança que ele resgatou do mercado de escravizados, numa região que hoje faz parte do Sudão do Sul. Esse menino foi batizado com o nome de Daniel. Seu nome completo era Daniel Sorur Pharim Deng.
Ele foi o primeiro sacerdote africano formado pela ação de Comboni. Ainda desconhecido pelo grande público brasileiro, o Padre Daniel Sorur foi um verdadeiro apóstolo, tendo feito diversas viagens aos países da Europa Ocidental, na África e no Oriente Médio. Ele falava Italiano, Francês, Árabe e sua língua natal, que era o Dinka.
Em suas viagens, Padre Sorur enfrentava o forte racismo, mas era destemido. Nas comunidades católicas que visitava, denunciava a dura situação da escravidão, os avanços das ações predatórias contra a África e escreveu artigos e livros. Chegou a mencionar, num livro de sua autoria, a alegria que sentiu quando soube que a escravidão havia sido abolida no Brasil, em 1888.
Os anos de produção e ação do destemido sacerdote coincidiam com a conquista colonial da África. Sua figura ia na contramão do que os colonizadores queriam para os africanos e só isso já o fez ser um personagem absolutamente extraordinário.
Daniel Sorur, em suas palestras, viagens e escritos, narrava o impacto e a dor da escravização, ao recordar como isso havia acontecido com ele e sua mãe. Os detalhes do processo, a violência de ser separado dela, as lembranças do caminho até o mercado de escravizados e o encontro com Comboni impressionam porque é um relato em primeira pessoa de alguém que recorda a sua escravização na infância. Ele dedicou seus quarenta anos de vida aproximadamente (não se sabe exatamente o ano do seu nascimento) para lembrar daqueles que eram completamente esquecidos.
O religioso, de acordo com o historiador Giacomo Ghedini, chegou a escrever ao Papa Leão XIII sobre como pensava que deveria ser o processo de formação dos sacerdotes na África, mas infelizmente o documento não chegou ao Sumo Pontífice. Contudo, seus artigos, livros e escritos não foram perdidos e estão no Arquivo Comboniano em Roma.
Padre Sorur foi um dos dirigentes de uma colônia anti-escravista no Sudão. Observava os impactos da escravização na vida das pessoas e foi sacerdote de uma comunidade cristã que nascia sob o impacto da violência colonial. Lutou pela liberação de sua mãe em condição de escravidão, que conseguiu localizar. Era um homem que sentia em si o papel apostólico de ir ao mundo para dar visibilidade à violência que o continente africano sofria e, ao mesmo tempo, tinha um sonho de liberdade e de uma Igreja que fosse conduzida realmente pelos africanos.
Teve formação para ser sacerdote na Itália e no Líbano e foi um homem de brilhante expressão intelectual e eloquência nos seus discursos. Falecido em 1900, o religioso deixou, além dos seus escritos, sua autobiografia, que foi publicada pela revista Nigrizia.
Trazer agora para o público de língua portuguesa a história desse eminente sacerdote nos convida a irmos na direção dos que mais sofrem e a refletirmos sobre os processos que colocam tantas pessoas (irmãs e irmãos) em condições tão terríveis de exclusão. ✨Por fim, é muito importante lembrar que antes de nós, tivemos a forte voz de Padre Daniel Sorur que nos precedeu na luta por um mundo fraterno e livre da opressão.
Patrícia Mutanu Teixeira Santos
Professora de História da África, Universidade Federal de São Paulo