Um Deus Amor: Igreja em diálogo com umbanda e mulher negra
Pe. Bernardino Mossi dedica-se à pastoral afro no bairro Sussuarana, Salvador – BA. Parte da fundamentação teórica do diálogo entre as religiões para depois retomar o trabalho sério de inserção e aprofundamento das religiões de matriz africana, feito pelo Pe. Heitor Frizotti nos anos 80 e 90. Ao final, podemos ver os rumos que a pastoral afro foi tomando e que ações desenvolve hoje.
Equipe que promoveu a 1ª Marcha contra a Intolerância religiosa
1. Abertura a outras Religiões
A Igreja Católica através do Concílio Vaticano II manifestou a vontade de fazer uma abertura ao mundo. Nessa abertura, ela não pode deixar de pronunciar-se sobre as outras religiões que pretendem também levar o ser humano ao encontro de seu Criador. Lemos logo no início do documento Nostra Aetate a necessidade da Igreja de repensar sua atitude com as religiões: “a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não-cristãs” (NA 1). Reconhecendo que toda a humanidade tem a mesma origem: Deus, ela empenhou-se a elaborar uma teologia das religiões baseada na apreciação e na valorização das outras práticas religiosas, vendo nelas a manifestação de Deus que deseja salvar o género humano (1 Tim 2,4). As religiões podem ser vistas como lugares providenciais onde se manifesta a graça salvífica de Deus. Desta forma, a missão da Igreja Católica deve consistir em promover a união entre os homens. Pois ficou claro que cada religião, mesmo distinta ou separada uma a outra por causa da doutrina, cosmovisão, ritos, etc, ajuda o ser humano a satisfazer o seu desejo do Transcendente.
Infelizmente as religiões de matrizes africanas não foram tratadas explicitamente no NA. Essa ausência suscita uma reflexão. Foi feita uma análise sintética das grandes religiões como o Hinduísmo, Budismo, Islamismo e o Judaísmo sem mencionar as tradições religiosas africanas. Apenas lemos a seguinte expressão: “De igual modo, as outras religiões que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e também ritos sagrados”. No contexto de pluralismo religioso presente em Salvador, a nossa intenção consiste em aplicar na vida pastoral, as orientações da Igreja no diálogo quotidiano com os nossos irmãos e irmãs das religiões de matrizes africanas.
2. Combonianos e Diálogo com religiões de matriz Africana
Os missionários combonianos, querendo dar continuidade a essa visão da Igreja Católica sobre as outras religiões, fizeram a opção de se aproximarem das religiões de matrizes africanas na cidade de Salvador. Essa iniciativa ganhou maior ênfase com a ativa participação do padre Heitor Frisotti. Ele soube, conforme os documentos da Igreja, descobrir no Candomblé e na Umbanda, “as «sementes do Verbo», os fulgores daquela verdade que ilumina todas as pessoas – sementes e fulgores que se abrigam nas culturas e nas tradições religiosas da humanidade” (RM 56). Heitor consagrou a maior parte da sua missão aqui no Brasil às religiões de matrizes africanas, promovendo o intercâmbio na partilha das “riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto” (Diálogo e Anúncio 42). Usando uma expressão do São Daniel Comboni, Heitor fez causa comum com o povo negro nas suas lutas contra toda e qualquer discriminação. O padre João Munari, no seu livro Heitor Frisotti, sobre a proteção dos Orixás, nos deixa ler as profundas motivações do Heitor:
“Sendo branco, tenho condições de ouvir relatos sobre discriminação e racismo, de analisar estatísticas e recolher depoimentos, mas nunca saberei o que quer dizer viver uma vida inteira discriminado e despertar para uma consciência negra e para a dignidade só aos vinte ou, talvez aos sessenta anos. Sendo homem, posso perceber discriminações sexuais, o poder e a violência do machismo, mas dificilmente posso saber o que é humilhação, inferiorização e submissão impostas e subidas na carne das mulheres. Sendo cristão, dificilmente perceberei como minha experiência de fé possa constituir uma opressão e uma negação de si para os outros. Só quem é discriminado por ser negro, por ser mulher, por ser não-cristão sabe o que significa isso, sabe o que é viver excluído nesse país, sabe quanto é injusta essa sociedade” dizia ele.
3. O diálogo continua até hoje
No dia 29 de agosto de 1998 faleceu Heitor na Itália. Essa data, em vez de deixar uma lembrança de tristeza e de dor, tornou-se um ponto de partida de uma nova experiência: O seminário Padre Heitor Frisotti é organizado todo ano em agosto. Os missionários combonianos, durante esse seminário, dão continuidade ao trabalho do Heitor, dialogando com as religiões de matrizes africanas. Os temas abordados nesses seminários tratam sobre a questão de mulher negra, do racismo, do diálogo inter-religioso…
Além disso, a comunidade comboniana manteve esse espírito de relação com os terreiros, pois “no diálogo inter-religioso, mais que em toda relação interpessoal, está implicada a relação de cada pessoa com o Deus vivente” (O Cristianismo e as Religiões 110). Esta relação é sempre feita pela oração, canal de graça e de encontro com o Criador e sua criatura. Volta a dizer que “o fim próprio do diálogo inter-religioso […] é a comum conversão dos cristãos e dos membros das outras tradições religiosas ao mesmo Deus” como nos recorda Jacques Dupuis. Não se trata apenas de uma relação, mas uma aproximação, um intercâmbio, uma partilha de fé e experiência, de luta a favor da vida. O DA chama isso de diálogo de vida, “onde as pessoas se esforçam por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações” (DA 42).
4. Celebrando o 20º Aniversário do Heitor
Assim, para comemorar os vinte anos do falecimento do grande missionário “negro honorário por ter assumido como própria a causa dos negros”, os combonianos, juntos com os paroquianos e a direção do CENPAH (Centro de Pastoral Afro Heitor Frisotti) organizaram o seminário de 2018 com tema: Com Pe. Heitor rumo ao encontro das Religiões. Como recomendam os documentos da Igreja, sobretudo os mencionados nesse artigo, esse seminário ofereceu aos participantes a oportunidade de mudar de paradigma, de abandonar os preconceitos a fim de saírem ao encontro do outro. Foi uma semana rica de conhecimento com as três religiões convidadas: o Judaísmo, o Islamismo e a Umbanda. Dessa maneira, a celebração da memória de Heitor foi uma aplicação da orientação do NA, que “exorta a todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens” (NA 3). Os combonianos acreditam que uma mútua compreensão eliminará muitas “tensões e os conflitos, e também os eventuais confrontos, para uma melhor compreensão entre as diversas culturas religiosas existentes numa determinada região” (DA 46). No caso concreto de Salvador, esses encontros promovidos entre diversas religiões presentes ajudam na superação dos conflitos e, sobretudo da intolerância religiosa praticada contra as religiões de matrizes africanas.
5. 1ª marcha contra a Intolerância religiosa em Sussuarana
O NA no seu parágrafo quinto exprime a fé numa fraternidade universal e condena toda forma de discriminação racial. Para que haja a unidade e a paz entre os povos é preciso reprovar “qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião” (NA 5). Assim, para que haja paz entre as diversas denominações religiosas em Salvador, é preciso também que a Igreja local reprove qualquer discriminação e promova encontros e eventos entre as religiões, sobretudo entre o cristianismo e as religiões de matrizes africanas. Infelizmente, isso não acontece e assistimos ao escândalo de agressão física, moral e psicológica praticada contra os adeptos de Umbanda e Candomblé.
1ª Marcha contra a Intolerância religiosa
Para promover a paz e o respeito mútuo entre as diversas denominações em Sussuarana, o Coletivo “Negritude Sussuarana” em parceria com grupos culturais, sociais e religiosos da comunidade, organizou em fevereiro desse ano a “1ª caminhada de combate à Intolerância religiosa em Sussuarana”. O CENPAH participou ativamente na realização desse evento, pois foi sempre o desejo do Heitor. O objetivo dessa marcha foi um convite para valorizar e respeitar a fé e a prática religiosa dos outros. Peçamos a intercessão de São Daniel Comboni para que haja a paz e o respeito entre as religiões no Brasil.
Bernardino Mossi, comboniano em Salvador-BA